Postura 'workaholic' de nova premiê assusta japoneses

Postura 'workaholic' de nova premiê assusta japoneses

"Primeira-ministraNova primeira-ministra do Japão diz dormir até duas horas por noite e quer flexibilizar regras trabalhistas. Críticos temem retrocesso na prevenção de mortes por trabalho excessivo no país.A primeira-ministra do Japão , Sanae Takaichi , já externou, mais de uma vez, a admiração que possui por Margaret Thatcher.

A ex-premiê britânica, que ocupou o cargo durante vários anos, foi uma conservadora convicta com opiniões fortes sobre política econômica, segurança nacional, imigração e várias outras posições de centro-direta que hoje são compartilhadas por Takaichi.

Thatcher também construiu uma reputação em torno do seu espírito workaholic. A britânica costumava dizer que só precisava de quatro horas de sono por noite.

De forma parecida, Takaichi tem externado o mesmo desdém pelo descanso e já indicou que espera o mesmo nível de comprometimento de seus ministros e da própria população japonesa. A atitude, no entanto, tem feito soar alarmes em alguns setores do país.

Após ter sido nomeada como primeira-ministra em outubro, Takaichi afirmou que pretendia descartar "equilibrio entre vida profissional e pessoal" para si mesma. "Vou trabalhar, trabalhar, trabalhar e trabalhar", declarou a japonesa na ocasião.

Reuniões na madrugada

A premiê japonesa manteve a palavra. No início deste mês, a premiê convocou uma reunião às 3h da manhã no seu gabinete, antes de outra reunião, da comissão do Orçamento, que começaria às 9h da manhã daquele dia.

Ela admitiu que dorme "cerca de duas horas por noite agora, quatro horas no máximo”. "Provavelmente é ruim para a minha pele", brincou.

Takaichi também solicitou ao ministro do Trabalho que analisasse a possibilidade de flexibilizar as restrições a horas extras – fixadas em um máximo de 720 horas por ano –, a fim de incentivar o crescimento econômico.

Tomoko Yoshino, primeira mulher a chefiar o Rengo, o maior sindicato do Japão, destacou que o número já está próximo do limite que aumenta o risco de karoshi, termo japonês que significa morte por excesso de trabalho.

Jornadas excessivas

"Não podemos permitir que o limite máximo seja flexibilizado", disse Yoshino a repórteres em Tóquio. "Ainda estamos apenas na metade do caminho para reduzir o karoshi a zero e promover reformas no estilo de trabalho”, afirmou a sindicalista.

Um grupo de advogados que representam as famílias de pessoas que morreram de karoshi externou uma posição na mesma linha. O grupo emitiu uma declaração afirmando que os comentários da primeira-ministra "não ajudam" em um país que há muito tempo é famoso por sua cultura de jornadas de trabalho excessivas.

A declaração do Conselho Nacional de Defesa das Vítimas de Karoshi apelou a Takaichi para que suspendesse os esforços para reverter os recentes progressos na criação de um equilíbrio mais saudável entre a vida profissional e pessoal e para que parasse com os comentários mais "exaltados".

De acordo com estatísticas do governo japonês, um recorde de 1.304 casos de mortes e problemas de saúde relacionados ao excesso de trabalho foram registrados no ano fiscal de 2024 no Japão – um aumento de 196 casos em relação ao ano anterior.

Do total, 1.057 foram de distúrbios de saúde mental relacionados ao trabalho, incluindo "abuso de poder por parte de superiores ou outras pessoas” e "assédio por parte de clientes".

Cultura de trabalho tóxica

A preocupação chegou até mesmo a ser compartilhada por alguns membros do governo de Takaichi. O ministro da Saúde, Takamaro Fukuoka, afirmou que a pasta "acredita que perder a vida ou a saúde devido ao excesso de trabalho não deve acontecer".

O problema também é uma questão de direitos humanos, destacou Teppei Kasai, representante da Human Rights Watch em Tóquio.

"Não acredito que esse seja um fenômeno particularmente japonês. Existem locais de trabalho com culturas e regras tóxicas em vários outros países", disse ele.

"Dito isso, a cultura corporativa japonesa tende a enfatizar excessivamente a presença em vez da produtividade, o que pode levar os trabalhadores a se sentirem obrigados a comparecer ao trabalho mesmo que estejam doentes ou saibam que não serão produtivos por algum outro motivo", disse Kasai à DW.

Embora tenha havido alguns progressos na cultura de trabalho no Japão desde a pandemia de covid-19 em 2020, há preocupações de que as pressões sobre os trabalhadores possam aumentar mais uma vez, levando a um novo aumento nos casos de karoshi, depressão ou suicídios relacionados à carga excessiva.

Regras internacionais

Segundo Kasai, o Japão deveria seguir as diretrizes de 2016 da ONU sobre condições de trabalho. Essas regras definem que os Estados devem "estabelecer padrões mínimos que precisam ser respeitados e não podem ser negados ou reduzidos com base em argumentos econômicos ou de produtividade".

"É importante ter em mente que todos têm direito a descansar todas as semanas como parte de condições de trabalho justas e favoráveis, o que significa que nenhum trabalhador deve poder 'escolher' trabalhar 90 horas por semana", destacou Kasai.

"Também é fundamental compreender que a flexibilização do horário de trabalho pode aumentar o risco de exploração laboral para as pessoas em determinados setores."

A primeira-ministra Takaichi colocou novamente em destaque as longas jornadas de trabalho no Japão, mas o debate ficou ainda mais urgente depois que vários profissionais compartilharam jornadas de trabalho de 18 horas nas redes sociais.

Hiro é o autor do canal japonês "Typical Salaryman” (Funcionário comum, em tradução livre) no YouTube e Instagram. Ele faz publicações como "Sem dinheiro antes do dia do pagamento”, "Uma semana de desespero corporativo” e "Semanas de 65 horas no Japão”.

Num video publicado no YouTube com o título "Every Day is Hell” (todo dia é um inferno), Hiro descreve como se sente solitário e exausto por trabalhar na cidade japonesa de Osaka e como encontra consolo na comida. Comentários de perfis de todo o mundo no vídeo são reveladores.

"Espero que um dia você consiga um emprego melhor e continue com saúde por muito tempo", diz um deles. Outro espectador afirma: "Você é um sujeito incrível. Estou assistindo aos seus vídeos desde ontem. Desejo tudo de bom para você. Continue produzindo seu conteúdo e deixe essa vida".

Jornadas excessivas

Issei, de 27 anos, esperava encontrar um emprego estável logo após se formar. Em vez disso, passou por uma série de empresas que exigiam muitas horas extras e onde a cultura era "desafiadora" para quem esperava um equilíbrio razoável entre vida profissional e pessoal.

"São as chamadas 'Black kigyō' e era muito difícil”, diz Issei, que trabalhou no setor de vendas e pediu para não revelar seu sobrenome, pois atualmente está desempregado e se candidatando para novas vagas.

"Eu acumulei algumas dívidas depois da faculdade e era difícil sobreviver, mesmo trabalhando em tempo integral", explica. "Havia dias em que eu ficava muito deprimido, mas eu li sobre pessoas que morriam de karoshi por trabalharem demais ou que cometiam suicídio."

"Para mim, nunca foi tão ruim assim, porque eu iria preferir desistir, mas consigo entender como algumas pessoas não sentem que podem fazer isso e simplesmente continuam até que seja tarde demais."

Outros, no entanto, são cautelosamente a favor de permitir que qualquer pessoa que queira trabalhar horas extras o faça sem infringir a lei, especialmente em um momento de desafios econômicos.

"A questão é complicada", afirma Makoto Watanabe, professor de Comunicação e Mídia. "Algumas pessoas querem trabalhar muitas horas porque podem ganhar um bom salário e existe legislação para proteger aqueles que não querem fazer horas extras ilimitadas. Existe um problema com suicídios, doenças e karoshi relacionados ao excesso de trabalho, mas acho que as coisas melhoraram nos últimos anos."

"Acredito que, se as leis não forem flexibilizadas a ponto de os empregadores poderem abusar delas, as pessoas deveriam poder trabalhar o quanto quiserem", argumenta Watanabe.

Se você está sofrendo de grave tensão emocional ou pensamentos suicidas, não hesite em procurar apoio profissional. Você pode encontrar ajuda no Centro de Valorização da Vida (CVV) pelo site https://cvv.org.br/