As dificuldades enfrentadas por uma pessoa que teve câncer não terminam, necessariamente, com a cura da doença. Relatos de pacientes recuperados citam estigmas e desconhecimento em um cenário no qual se busca a reinserção social e profissional. O resultado algumas vezes é o oposto, com a demissão ou, , por exemplo, a revogação de uma nomeação para um cargo público.

A advogada Marília Biscuola, de 33 anos, conhece bem o problema. Ela teve a nomeação em um concurso público estadual revogada em junho por ter enfrentado um câncer em estágio inicial há mais de dois anos, logo após prestar a seleção. “Era um nódulo muito pequeno, tinha menos de 1 centímetro, nem precisei fazer quimioterapia”, detalha a advogada.

Depois da doença, ela fez entrevistas e exerceu serviços de assessoria jurídica normalmente em um outro órgão público paulista, do qual se demitiu assim que teve confirmada a sua nomeação. Ela fez, então, o exame habitual para assumir o novo cargo, no qual teve de informar o histórico de saúde. “Aí saiu, no Diário Oficial, ‘não apta'”, recorda.

Surpresa, ela entrou com uma ação e conseguiu uma liminar, mas teme que o processo acabe se arrastando por anos. “As pessoas acham que só o tratamento é difícil. Difícil também é o depois”, desabafa. “Se com 33 anos eu não posso trabalhar, o que eu vou fazer da vida? Foi revoltante.”

Ao longo dessa experiência toda, Marília diz perceber um estigma. Não lhe passa desapercebida a “expressão de luto” que assumem outras pessoas quando ela contou que já teve a doença. “Cada caso precisa ser analisado individualmente”, destaca. “O trabalho é fundamental. A gente sem trabalho não é nada nessa vida.”

Em nota, o governo do Estado informou que baseia suas decisões no Manual de Perícia Médica do Servidor Público Federal, “que somente considera a pessoa como não portadora de neoplasia maligna se, após cinco anos de acompanhamento clínico, não apresentar evidência de doença ativa”.

Avaliações de candidatos, diz ainda a nota, são realizadas “por especialistas da área da patologia ou por médico especialista em Perícia Médica e Medicina Legal, que está habilitado a avaliar todas as situações”. “Foi o que ocorreu no caso da candidata.”

Atualização

Episódios desse tipo estão espalhados pelo País, e parte deles vai parar nos tribunais. Nestes, as decisões são variadas: tanto reconhecem a discriminação dos profissionais com histórico de câncer como também tomam o lado oposto, ao dizer que se trata de uma doença não discriminatória.

Uma pesquisa de setembro feita pelo LinkedIn e pela Fundação Laço Rosa apontou, por exemplo, que 31% das pessoas que têm ou já tiveram câncer continuaram trabalhando durante o tratamento. Outras 18% dizem ter sofrido dispensa discriminatória, enquanto 26% desconheciam o termo.

Em 2019, decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) aplicou a súmula de dispensa discriminatória para determinar a readmissão de um executivo de uma grande empresa que teve câncer de próstata. Na ocasião, o ministro Cláudio Brandão chegou a destacar que “no meio social do Brasil de hoje, o câncer ainda causa estigma, a começar pela possibilidade de morte, muitas vezes iminente”.

Diretor de Advocacy do Instituto Oncoguia, Tiago Matos atribui a frequência de relatos de discriminação a uma “questão cultural” e a uma legislação “frágil”. “É uma reclamação constante”, destaca. “Quando você tem uma quantidade muito grande de ações judiciais é porque a legislação é falha ou falhou a fiscalização.” “Isso acontece, muitas vezes, por uma falsa impressão de que a pessoa que teve câncer não vai produzir como antes”, acrescenta. “Na prática, ainda se vê muita gente sendo mandada embora no dia seguinte ao de sua volta do auxílio-doença.”

Para o advogado, uma possível discriminação precisa de análise individual para se compreender as circunstâncias da demissão ou da revogação de uma nomeação. Dentre os elementos que sinalizam isso estão o período de tempo que ocorreu após o retorno da licença e as características do câncer de que a pessoa foi acometida. “Cada caso precisa ser analisado individualmente, no contexto. O câncer é doença em que as pessoas podem viver cronicamente durante anos.”

Licença

Situação oposta vive a professora de educação física Suany Ataídes, de 35 anos, que está em tratamento para o câncer e, após uma cirurgia reconstrutiva, ficou com sequelas no braço esquerdo. Entre o segundo semestre de 2019 e o início de 2020, antes da pandemia, ela teve de realizar atividades programáticas nas escolas em que trabalha, mesmo que isso lhe provoque fortes dores.

Por causa dessas dores, ela chegou a deixar a fisioterapia e focar apenas em tratamentos para aliviar a situação, como massagens e acupuntura. “Sinto muita dor e, quanto mais mexo, pior fica. O acompanhamento médico ajuda a aliviar, mas não é suficiente quando se está mexendo o braço”, relata.

A sequela também dificulta os movimentos e a impede de levantar peso. Quando exercia as atividades profissionais presenciais, antes da pandemia, precisava pedir ajuda a outras professoras ou aos próprios alunos para instalar equipamentos e ensinar determinados movimentos.

Com esforço, ela conseguiu adaptar algumas atividades, mas as sequelas a impedem de cumprir todo o conteúdo programático. No ensino fundamental, por exemplo, precisa demonstrar e ajudar as crianças a darem cambalhotas. Se for cumprir essa atividade, terá de realizar diversas vezes um movimento que lhe causa dores. “Como não posso carregar com o braço esquerdo, estou fazendo tudo com o lado direito e machucando esse lado também. É horrível.”

Em nota, o governo do Estado de São Paulo disse que a professora tem contrato temporário e a avaliação não é competência do Departamento de Perícias Médicas do Estado (DPME). As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.