Uma Igreja em compasso com o século 21, acolhendo minorias, valorizando mulheres, aberta ao diálogo e ao debate de temas controversos. Desapegada de luxos e eurocentrismo. E que tenha, como maior desafio, refletir profundamente sobre si mesma. É esse o legado que Francisco vem plantando há uma década, cercado por opositores ferrenhos. Aos 86 anos e ciente de que a hora de ir embora se aproxima, costura nomeações para que o conclave que elegerá o futuro papa seja o mais próximo possível de seus ideais e impeça que a Igreja regrida a séculos de ostentação, corrupção impune e crimes abafados. Porque a questão, em resumo, é de sobrevivência.

Assim, o concílio extraordinário que Francisco convocou em agosto passado já foi interpretado com um pré-conclave, com 20 novos cardeais nomeados e em meio a especulações sobre sua renúncia. No total, são 227 cardeais, mas apenas 132 eleitores (aqueles com menos de 80 anos). Com 82 nomeados por ele, já está perto dois terços obrigatórios para a eleição do futuro papa.

BEIRA-MAR O papa Francisco esteve no Rio de Janeiro em 2013, para a Jornada Mundial da Juventude (Crédito:CHRISTOPHE SIMON)

E são de várias partes do mundo. Dos novos, são destaques o italiano Giorgio Marengo, o mais jovem da história aos 48 anos e “inédito” representante da Mongólia; e o norte-americano Robert McElroy, progressista em relação a questões como homossexualismo e aborto. Ainda foram “criados” (o termo usado pela Igreja para as nomeações) africanos, indianos e sul-americanos, como Paulo Cezar Costa, arcebispo de Brasília, e Leonardo Ulrich Steiner, de Manaus — o primeiro da região amazônica.

Assim, Francisco mudou a geopolítica da Igreja, dando mais peso para o hemisfério sul, onde estão 80% dos católicos. E tira a ênfase da Europa: se em 2013 tinha 60 cardeais eleitores desse continente, agora são 54; Ásia e Oceania, que tinham 11, agora contam com 24, e vindos de países como Tonga e Papua Nova Guiné, que nunca tinham sido representados.

O cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio já havia sido o segundo mais votado na eleição do alemão Joseph Ratzinger, depois Bento XVI, mas a Igreja precisou mesmo de Francisco em 2013, para promover uma reforma profunda diante de escândalos como a corrupção no Banco do Vaticano e os pedófilos que, quando denunciados, na maioria das vezes eram apenas removidos para outras cidades.

O papa Francisco, que só se tornará Francisco I quando houver o Francisco II, encarou uma guerra, mas segue aproximando a Igreja da realidade do povo. Um de seus maiores desafios, e um claro objetivo, é mostrar que a Igreja católica deve ser um lugar onde fieis são acolhidos, ouvidos e acompanhados”, diz o padre Julio Lancelotti, da Paróquia de São Miguel Arcanjo e conhecido por seu trabalho em meio aos necessitados. “Ele quer dissolver essa centralização do clero, onde toda autoridade e todo saber sempre vêm de cima. Porque esse clericalismo, marcado por dogmatismo e autoritarismo, impede a participação de leigos, de mulheres e de rejeitados. Impede a Igreja de chegar à base.”

Daí a forte oposição da parte de grupos ultraconservadores, diante do foco em minorias, da não-criminalização de homossexuais, das visitas a campos de refugiados, como na simbólica Lampedusa, na Itália, aonde Francisco chegou com um báculo (espécie de cajado com um crucifixo) não de prata, mas feito da madeira de barcos destroçados que levam imigrantes. Ou de viagens a locais “na beira do mundo” como o Congo, na África, em janeiro deste ano.

Papa do povo

Na chegada ao aeroporto para o conclave, em 2013, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio descartou uma carona, seguindo de trem e metrô, “porque é onde ele ouve sobre o quê as pessoas andam falando”, como conta o padre Julio. “Quando surgiu eleito, diante da multidão em Roma, não portava nem os anéis nem os crucifixos de antecessores, que são riquíssimos, cravejados de pedras preciosas. Estava só com o crucifixo e o anel levados de Buenos Aires. Nem a capinha vermelha. Só colocou a estola para a bênção. E disse que seu nome seria Francisco, o mesmo do santo que viveu entre os pobres… Essa já foi a senha.”

Quando aparece de branco, as faixas laterais que pendem da cintura de sua vestimenta não têm seu brasão — no caso de outros papas, eram bordados a ouro, com pedras preciosas. Não foi morar no Palácio Apostólico e sim na Casa de Santa Marta, onde fica em um quarto e come no refeitório, com todos da hospedaria. Fez do Palácio de Verão um museu — “mesmo porque nem tira férias…”, como observa o padre Julio. Fez os cardeais que moram na cidade pagarem aluguel, a preço de mercado, e também distribui envelopes dizendo que espera doações generosas, porque “sabe do saldo de cada um”. “Ele quer que a Igreja viva sem privilégios. E, com isso, criou uma saia justa para seu sucessor.”

Em cena aberta

As mudanças pelas quais a Igreja está passando com o papado de Francisco se dão por trás de câmeras. Ainda assim, há imagens significativas destes dez anos, como do desfile em carro aberto na praia de Copacabana, em 2013, quando o Brasil — maior país católico do mundo — foi sede da Jornada Mundial da Juventude.

ABRAÇO Em 2016, o papa Francisco se encontrou com o patriarca Kirill, em Havana, Cuba (Crédito:Gregorio Borgia)

Outro momento icônico foi visto no Parlamento Europeu em 2014, quando o papa Francisco compareceu para alertar sobre a necessidade de se preservar a Terra, como criação de Deus, de um desastre ambiental cada vez mais próximo. Um exemplo da disposição ao diálogo se deu em 2016, com o primeiro encontro de líderes das Igrejas do Ocidente e do Oriente desde o Grande Cisma de 1054, com o papa Francisco e o patriarca russo Kirill se reunindo em Cuba.