“Diante das discussões sobre a reforma do sistema de proteção social dos militares, temos que destacar as peculiaridades da nossa profissão, diferentes das demais” General Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa (Crédito: Ricardo Borges/Folhapress)

Jair Bolsonaro se despiu do terno e gravata de presidente da República e vestiu farda e quepe ao apresentar a proposta de reforma previdenciária dos militares. Além de não cortar privilégio algum da categoria fardada, responsável por um rombo gigantesco na Previdência, proporcionalmente bem maior do que o gerado pelos trabalhadores civis, as benesses concedidas aos integrantes do Exército, Marinha e Aeronáutica configuraram um verdadeiro presente de Natal antecipado. Não por acaso, o presidente em suas aparições na internet usou o pronome “nós” para se referir às demandas corporativas dos militares. Como forma de compensar as novas regras de aposentadoria que representam economias de R$ 97 bilhões em dez anos, eles receberam R$ 87 bilhões antecipados para usufruírem desde já em benefícios de readequação da carreira. Ou seja, um saldo positivo de apenas R$ 10 bilhões aos cofres do INSS, ao invés dos quase R$ 100 bilhões prometidos inicialmente. Por mais que a carreira militar tenha suas peculiaridades – como o governo fez questão de alardear –, a discrepância não justifica o tratamento generoso concedido na proposta. Os fatores positivos, como o maior tempo de serviço e a alta na alíquota de contribuição, nem de longe servem de contrapeso aos gigantescos privilégios concedidos.

Conta salgada

Como militar inativo, o capitão Bolsonaro nunca escondeu que lutou a vida toda para a categoria não ter prejuízos na aposentadoria. Em março de 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso enviou ao Congresso a Proposta de Emenda Constitucional PEC nº 33/95, que significou, de fato, a primeira “reforma da Previdência” após a redemocratização. Nessa PEC, FHC estabeleceu um regime próprio de aposentadoria para os militares, fixando também a contribuição dos inativos. Na época, o então deputado Jair Bolsonaro criticou a proposta duramente. “No caso específico dos militares, nada adianta tal fato (mudanças na Previdência), pois o direito adquirido não será respeitado pelo Governo, uma vez que na proposta o salário do militar da reserva será desvinculado do salário do militar da ativa. Uma barbaridade a proposta governamental”, declarou Bolsonaro. “Os ministros militares, em vez de pedirem mais sacrifícios e compreensão aos seus subordinados, deveriam sair em defesa deles e atacar esta imoral proposta governamental para a Previdência Militar, sob o risco de perderem por completo o comando sobre a tropa”, pregou Bolsonaro.

Passados 24 anos, seria natural supor que Bolsonaro deixaria de lado o papel de defensor dos privilégios dos integrantes das Forças Armadas. Afinal, virou presidente da República de todos os brasileiros. Investido no cargo, o mandatário deveria convencer os cidadãos de que eles têm de aceitar a “salgada” – como ele próprio disse – reforma da Previdência, sob o risco de o país quebrar. Mas ele prefere criar quizumba com o Congresso e preservar os militares. Prova disso é que, em vez de ter sido elaborada por técnicos do Ministério da Economia, ela foi gestada no seio do próprio Ministério da Defesa. Ou seja, na prática, a tremenda presença de militares no governo possibilitou que eles mesmos assumissem o protagonismo nas mudanças que os afetam.

O resultado disso é que a reforma da Previdência para os militares que desembarcou no Congresso é bem mais branda que a dos civis, quando deveria ser o inverso. Afinal, o buraco deixado pelos militares é proporcionalmente maior. Por exemplo, o rombo de um trabalhador civil é de R$ 8 mil por ano, enquanto que do servidor federal é de R$ 60 mil. Já o de um militar atinge o assustador valor de R$ 114 mil ao ano. Em 2017, um militar aposentado recebeu, em média, R$ 11,5 mil ao mês e o servidor federal R$ 10,1 mil. O trabalhador comum ganhou, por sua vez, uma média de R$ 1,2 mil, sem considerar ainda que o aposentado rural garante apenas R$ 935 mensalmente. Associando a reforma para os militares com a reestruturação de cargos, o governo acabou tirando com uma mão e devolvendo com a outra. E isso causou um mal-estar geral no Legislativo. O primeiro efeito negativo é que a proposta dos militares gerou um efeito cascata no aparecimento de outros lobbies no Congresso. Categorias como Policiais Militares, Bombeiros, a Advocacia Geral da União (AGU) e o MPF passaram a atuar fortemente para tentar se encaixar também nas exceções.

Aumento salarial

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Ao associar as duas propostas, fica evidente o esforço para contrapor mudanças previdenciárias com novos privilégios na reestruturação das carreiras. A reforma passa a incluir a contribuição previdenciária de pensionistas, alunos de escolas de formação, cabos e soldados, que hoje não entram no bolo. Atualmente, ativos e inativos contribuem com 7,5% sobre os rendimentos. Pela proposta de reforma, todos os militares passarão a arcar com 10,5% do rendimento integral. Em contrapartida, cria-se na reestruturação um adicional de disponibilidade, algo que não é previsto atualmente. Trata-se de um acréscimo para os militares que são deslocados para uma base diferente daquela onde moram. Na realidade militar, praticamente todo mundo. Assim, coroneis e subtenentes terão adicional de 32% sobre seus salários; tenentes-coroneis de 26%; majores e sargentos de 20%; capitães e segundo sargentos de 12%, primeiro tenentes e terceiro sargentos, de 6%. Para os demais militares, será de 5% sobre o rendimento bruto.

Outro exemplo do escandaloso morde e assopra oferecido aos militares está relacionado ao tempo de serviço e ajuda de custo. Hoje, o tempo mínimo para os militares é de 30 anos. Com a reforma, esse período passará a 35 anos. Além disso, a data limite para ingressar na reserva atualmente é de 44 a 66 anos. Com a reforma, a data limite será de 50 a 70 anos. Até aí, em tese, tudo bem: a reforma para os civis também estabelece novas idades mínimas para a aposentadoria. Mas, em contrapartida, na reestruturação dos militares, há a previsão de um aumento da ajuda de custo que os integrantes das Forças Armadas ganharão quando passarem à reserva.

Hoje, os gastos do governo com estudos de militares somam R$ 1,2 bilhão ao ano. Com a reestruturação das carreiras, esses custos passarão a ser de R$ 6,8 bilhões

Hoje, o militar recebe como ajuda de custo quatro vezes o valor do seu soldo. Trocando em miúdos: se um militar tem vencimentos de R$ 10 mil, na ida para a reserva recebe R$ 40 mil como benefício. Com a reestruturação da carreira, essa ajuda passará a ser de oito vezes o valor do salário. Ou seja, no final da carreira, um militar com soldo de R$ 10 mil vai ganhar R$ 80 mil de benefício. Enquanto isso, seu colega civil se aposentará no máximo recebendo o teto, que hoje é R$ 5,8 mil. E nenhum benefício a mais.

A desfaçatez é tanta que os militares ainda terão aumentos nos custeios de estudos. Hoje, um general, coronel ou subtenente recebe 30% do soldo para as atividades extras. Com a reestruturação, esse benefício sobe para 73%. Para coronel, tenente coronel, major, tenentes e primeiro sargento, esse adicional subiria de 25% para 68% do soldo. O mimo é expressivo. Hoje, os gastos do governo com estudos de militares somam R$ 1,2 bilhão. Com as mudanças, esses custos passarão a ser de R$ 6,8 bilhões ao ano. Mas mesmo a economia de R$ 10 bilhões em dez anos pode ficar ameaçada se o governo vier a aumentar o efetivo das tropas. Para que a economia ocorra de fato, será preciso que o governo corte o efetivo das Forças Armadas em 10%. O impacto da diminuição de militares poderia chegar a R$ 33,6 bilhões em dez anos. Se esse corte não acontecer, em vez da economia de R$ 10 bilhões o governo teria um aumento de gastos de R$ 23 bilhões em dez anos. O sacrifício dos civis encheria o bolso dos militares. Uma completa aberração vestida de papai noel.


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