Acena clássica de uma geleira se desfazendo na Antártica já não é a única imagem assustadora das consequências do efeito estufa. As constantes elevações das temperaturas, o aumento na concentração de poluentes no ar, as chuvas exponenciais, a seca e o desmatamento estão afetando a saúde humana com impacto único na história da espécie. Hoje, a poluição é responsável por uma a cada seis mortes no planeta, doenças infecciosas como malária e dengue registram crescimento impressionante e a desnutrição, resultado da queda na oferta de alimentos ocasionada pelas estiagens, atingiu 422 milhões de pessoas em 2016. Em 1990, foram 398 milhões.

Esse duro retrato foi estampado na semana passada na última edição da revista científica The Lancet, uma das mais respeitadas do mundo. A Lancet é conhecida por divulgar sistematicamente revisões robustas de temas importantes para a saúde pública. Agora, foi a primeira vez que a publicação dedicou tamanho destaque à associação entre o clima e a saúde e justificou a escolha afirmando se tratar de uma questão urgente, porém ainda merecedora de pouca atenção. O trabalho avaliou os impactos dos eventos extremos, a vulnerabilidade da população e as possíveis ações para mitigação dos problemas.

Sua publicação na mesma semana em que a Organização Meteorológica Mundial, ligada à ONU, anunciou o recorde na concentração de dióxido de carbono na atmosfera evidenciou o quanto o assunto precisa ocupar os primeiros lugares na lista de preocupações mundiais. “Esses dados mostram que chegou a hora de a saúde entrar com força total e ter seu próprio capítulo nos relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU”, afirma o médico Paulo Saldiva, coordenador do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Devemos mostrar os impactos que as mudanças climáticas causam hoje e não só em um futuro distante.”

Desnutrição na África: causas e consequências do aquecimento global (Crédito:ANDREW HOLBROOKE)

Relação complexa

A relação entre as alterações climáticas e o impacto no corpo é complexa e não passa por uma via apenas. Basicamente, a cada mudança correspondem determinados prejuízos. Alguns são mais conhecidos. A elevação da temperatura, por exemplo, promove maior perda de água pelo organismo, elevando a chance de formação de coágulos que podem resultar em infarto ou acidente vascular cerebral. Outros começaram mais recentemente a ser compreendidos. É o caso do câncer, cujo risco também se eleva na presença de alta concentração de poluentes. Sabe-se que, além de interferirem na capacidade que o corpo tem de reparar eventuais danos ao DNA, substâncias tóxicas presentes no ar enfraquecem as defesas contra as células tumorais.

Há circunstâncias que não apresentam efeito direto, mas que, ao final, também colocam a vida humana em risco. Enchentes provocadas por chuvas acima da média tornam-se oportunidade de proliferação de vírus e bactérias. “Os riscos de infecção por ingestão de água ou de alimentos contaminados aumentam nesses casos, promovendo a propagação de doenças infecciosas”, afirma Diana Marinho, pesquisadora do Programa de Mudanças Ambientais Globais e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. Uma das consequências mais comuns de infecções adquiridas desta forma é a diarreia. Segundo o levantamento da The Lancet, 1,8 milhão de pessoas morreram em 2015 por causa do contato com água contaminada.

O desmatamento crescente e um processo caótico de urbanização, por sua vez, estão na origem da proliferação de vírus antes restritos às matas. O Ebola, na África, é um deles. A dengue, que castiga o Brasil há décadas, e a febre amarela, que voltou a assustar, são outros exemplos. “Antes tínhamos que tomar vacina da febre amarela para irmos à Amazônia. Hoje temos que ser imunizados se quisermos ir à zona norte de São Paulo”, diz o médico Paulo Saldiva. Há duas semanas parques desta região da capital paulista foram fechados após o aparecimento de saguis infectados pelo vírus da doença e uma vacinação em massa foi dirigida aos residentes da área. No início do ano, a doença chegou à beira de grandes cidades em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. “A situação é muito séria”, afirma Saldiva. “A população precisa ser informada dos impactos do clima na saúde e medidas devem ser tomadas.” Nesta semana chefes de estado se encontram na COP 23 — a Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU. Resta saber se a questão da saúde ganhará na pauta o destaque que merece.

MUDANÇAS QUE PODEM ATÉ MATAR

Doenças cardiovasculares
As altas temperaturas provocam maior perda de água pelo corpo, elevando o risco de formação de coágulos que podem originar infartos ou acidente vascular cerebral

Infecções
Provocadas por vírus e bactérias presentes em águas contaminadas, podem ser fatais. Uma de suas consequências mais graves é a diarreia

Enfermidades respiratórias
Os gases e as partículas tóxicas da poluição podem piorar os casos de pneumonia, infecções pulmonares, rinites e asma

Alergias

A poluição do ar pode agravar os sintomas de quem tem predisposição. Já as altas temperaturas podem desencadear alergias por fungos e por grãos de pólen

Câncer
Partículas presentes na poluição atmosférica prejudicam a capacidade de auto-reparação do DNA e enfraquecem o sistema de alerta do corpo contra células tumorais

Desnutrição
A falta de alimento em regiões que sofrem com a seca leva a um quadro agudo de deficiência nutricional que pode levar à morte.

Surtos ou Epidemias
Doenças como a dengue crescem com o fim das florestas. E vírus como o Ebola também chegam às cidades