Por que não faz sentido chamar Hitler de comunista

Por que não faz sentido chamar Hitler de comunista

""HitlerCandidata da sigla ultradireitista alemã AfD afirmou em conversa com o bilionário Elon Musk que ditador nazista não era "de direita", e sim um "socialista, comunista" – algo que historiadores refutam veementemente.Elon Musk, o homem mais rico do mundo, e Alice Weidel, candidata do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) a chefe de governo da terceira maior economia do mundo, se posicionaram sobre diversos temas em um bate-papo transmitido via X nesta quinta-feira (09/01).

Embora a tentativa de reinterpretar e distorcer fatos históricos sobre o nazismo não seja novidade, uma alegação de Weidel em particular causou perplexidade entre historiadores: a de que Adolf Hitler não seria "de direita", e sim um "socialista, comunista".

O que Weidel disse

"[Os nazistas] estatizaram toda a indústria. […] O maior sucesso após essa era terrível da nossa história foi ter caracterizado Adolf Hitler como de direita e conservador. Era exatamente o oposto. Ele não era conservador. Ele era esse cara socialista, comunista". Após a conversa com Musk, Weidel insistiu na afirmação em entrevista à emissora de TV alemã ntv: "Eu não recuo [do que disse]: Adolf Hitler era um esquerdista."

Não, Hitler não era um esquerdista

A alegação de Weidel não só não tem base na realidade como minimiza os horrores do nazismo praticados sob a liderança de Hitler entre 1933 e 1945.

A AfD tem vários diretórios estaduais monitorados de perto por serviços de inteligência por suspeita de atividades inconstitucionais, e reage às acusações frequentes de dar abrigo a neonazistas refutando essa associação. Foi o que fez Weidel em conversa com Musk, ao alegar falsamente que Hitler seria um "esquerdista".

Foi também o que fez recentemente o vice-presidente eleito dos Estados Unidos, JD Vance, ao afirmar que a AfD seria mais bem votada em regiões da Alemanha onde houve mais resistência aos nazistas – o que também não é verdade, como mostrou a DW em outro artigo.

Hitler também não era comunista

"Pura estupidez" – assim classificou o historiador alemão Thomas Sandkühler a fala Alice Weidel sobre a orientação política de Hitler. "O que Weidel fala é pura estupidez, que eu não quero valorizar ao discuti-la seriamente", respondeu ele à DW antes de dar a entrevista por encerrada.

E, ainda assim, muitos internautas parecem acreditar ou endossar a afirmação de Weidel sobre Hitler ser de esquerda.

Também o historiador e especialista em nazismo Michael Wildt se refere à fala como uma "grande besteira". "Hitler combateu o marxismo desde o início da forma mais brutal e violenta, e as primeiras vítimas a serem trancafiadas em 1933 nos campos de concentração eram esquerdistas, comunistas, social-democratas, socialistas", observa.

E se politicamente ele não tolerava a esquerda, economicamente também não era diferente. "O NSDAP [sigla do partido nazista] não mexeu na concentração de propriedade privada", ressalta.

"Principalmente do ponto de vista econômico Hitler não era comunista", concorda Thomas Weber, historiador e autor do livro Tornando-se Hitler: A construção de um nazista.

"O comunismo tem como objetivos, do ponto de vista econômico: a) A superação da propriedade privada; b) A superação de uma economia voltada para o lucro; e c) A coletivização (leia-se, estatização) dos meios de produção (mineradoras e fábricas, por exemplo) e dos recursos naturais mais importantes." E Hitler, como lembra Weber, rejeitava tudo isso.

Hitler era um antissemita e racista

Hitler também não pode ser classificado como comunista "porque ele era um antissemita e racista", afirma o historiador Wildt. "E isso não tem nada a ver com a ideia de uma sociedade comunista em que as pessoas são iguais, é exatamente o contrário disso."

O nazismo não surgiu durante a ditadura de Hitler, e sim após a Primeira Guerra Mundial, tornando-se cada vez mais popular à medida em que a Alemanha caminhava rumo à Segunda Guerra.

"O nazismo era extremamente nacionalista, antidemocrático, antipluralista, antissemita, rassista, imperialista e anticomunista", define a Central para Educação Cívica do estado de Brandemburgo, na Alemanha. O órgão ressalta ainda que a exclusão de minorias com base em critérios racistas teve importância central para o nazismo até o Holocausto.

O "nacional-socialismo" não era socialismo?

Para muitos nazistas, algumas ideias do socialismo e termos como "socialista" e "partido dos trabalhadores" foram úteis para atrair votos da classe operária e chegar ao poder em 1933.

A própria sigla do partido nazista, NSDAP, deriva de Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, que pode ser traduzido como Partido Alemão Nacional-Socialista dos Trabalhadores.

Vem daí a abreviação nazi, usada na Alemanha para designar apoiadores dessa ideologia (o Nationalsozialismus), e é desta abreviação que deriva a palavra nazismo, a denominação consagrada da ideologia na língua portuguesa.

Na prática, porém, o direito social e trabalhista instituído pelos nazistas após a tomada de poder serviu para reprimir, perseguir e assassinar comunistas, social-democratas e sindicalistas.

O historiador Weber frisa: "O principal ponto aqui é que da perspectiva de Hitler e de muitos nazistas, o 'socialismo' no nome do partido não era uma palavra vazia ou um truque, e sim algo que definia como Hitler via a si mesmo e como ele queria mudar o mundo. Ele sempre ressaltou isso."

Quando surgiu, o partido nazista tinha uma autointitulada ala socialista, que foi desmantelada em 1933, após os nazistas ascenderem ao topo do poder. Gregor Strasser, liderança dessa ala, foi executado a mando de Hitler junto com outros correligionários em junho de 1934.

O grupo de Strasser, segundo Wildt, queria um socialismo excludente, que beneficiasse apenas e somente a classe trabalhadora alemã, sendo tão racista e antissemita quanto o resto do NSDAP.

É por isso que há muito tempo há consenso entre a maioria dos historiadores de que não é possível equiparar o nazismo ao socialismo – mas é exatamente isso que muitas pessoas tentam fazer por razões políticas, observa Weber.

"Essa questão geralmente é discutida de forma muito limitada, à la 'Hitler era de esquerda ou de direita?'. E aí ou a direita tenta apresentar Hitler como um socialista ou esquerdista clássico – o que não faz sentido –, ou tentam reduzir o uso do termo 'socialismo' por Hitler e pelos nazistas a uma tática eleitoral. Isso também não faz sentido, porque desconsidera como Hitler e os nazistas se autodefiniam, como viam o mundo e como tentaram mudá-lo."