Por que morar em bairros vulneráveis aumenta o risco de demência

Nos últimos anos, diferentes estudos vêm apontando para um mesmo padrão: morar em áreas onde o acesso a serviços básicos é limitado está associado a maior probabilidade de declínio cognitivo. Um dos levantamentos mais recentes foi realizado pela Universidade Rush, em Chicago, nos Estados Unidos.  

Publicado em março na revista Neurology, da Academia Americana de Neurologia, o estudo acompanhou 6.781 idosos e revelou que moradores de regiões mais pobres tinham mais que o dobro de risco de desenvolver Alzheimer em comparação com os que viviam em bairros favorecidos. A velocidade de perda das funções mentais também era maior — cerca de 25% mais rápida. 

“A maioria dos estudos sobre fatores de risco ainda se concentra no nível individual, mas sabemos que o ambiente comunitário exerce uma influência importante sobre a saúde cerebral”, afirma à Agência Einstein Pankaja Desai, professora assistente de medicina interna na Universidade Rush e autora principal da pesquisa. Embora não estabeleçam causalidade direta, os autores destacam que o ambiente social onde uma pessoa vive exerce influência sobre o risco de demência mesmo quando ajustados fatores individuais como idade, sexo, escolaridade e etnia. 

Compreender melhor as causas da demência tem se tornado cada vez mais relevante no cenário global. Estima-se que mais de 55 milhões de pessoas vivam hoje com algum tipo de demência, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), com quase 10 milhões de novos casos por ano. No Brasil, cerca de 1,76 milhão de pessoas com mais de 60 anos convivem com a condição — número que pode chegar a 5,5 milhões até 2050, acompanhando o envelhecimento acelerado da população. 

“Se a gente quer ter uma população que vai envelhecer saudável, precisa melhorar a condição de vida dessas pessoas que vivem em vulnerabilidade social; começar a pensar em estratégias ao nível de comunidade para reduzir essas disparidades e, com isso, reduzir risco de declínio cognitivo e demência”, propõe o neurocientista Eduardo Zimmer, professor de farmacologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador sobre Alzheimer. 

Declínio evitável 

A demência é um problema que extrapola os limites do envelhecimento natural. Não se trata de um efeito inevitável da idade, mas de um conjunto de condições caracterizadas pelo declínio progressivo das funções cognitivas, como memória, linguagem, orientação espacial, atenção e capacidade de julgamento. 

Embora o avanço da idade seja o principal fator de risco, está ligada a processos patológicos e a fatores acumulados ao longo da vida. A forma mais comum é a doença de Alzheimer, que responde por até 70% dos casos e costuma se manifestar inicialmente por perdas de memória recente. Outros tipos relevantes incluem a demência vascular, associada a doenças cardiovasculares; a demência com corpos de Lewy, que combina sintomas cognitivos e motores; e a demência frontotemporal, que afeta principalmente comportamento e linguagem. 

Apesar das diferenças entre os tipos, todas as formas de demência compartilham um aspecto central: o comprometimento da autonomia. O avanço dos sintomas interfere na capacidade de realizar tarefas básicas do dia a dia, manter vínculos sociais e tomar decisões cotidianas. Por isso, entender os mecanismos que contribuem para o declínio cognitivo — e como eles podem ser evitados — tem se tornado prioridade em saúde pública. 

Nos últimos anos, revisões de grandes estudos populacionais consolidaram a noção de que parte significativa dos casos de demência poderia ser adiada ou prevenida. Em 2024, um relatório publicado na revista The Lancet atualizou a lista de fatores de risco modificáveis e estimou que até 45% dos casos no mundo estão ligados a condições como hipertensão, diabetes, obesidade, baixa escolaridade, isolamento social, depressão, tabagismo, colesterol elevado e perda de visão não corrigida.  

A lógica é cumulativa: quanto mais fatores de risco uma pessoa tem ao longo da vida, maior a probabilidade de sofrer declínio cognitivo. Por isso, o relatório sobre prevenção enfatiza a importância de agir cedo, ainda na infância e na meia-idade, para construir uma espécie de reserva cognitiva que proteja o cérebro nas décadas seguintes. 

Sociedade desigual, risco acumulado 

O problema é que esses fatores não se distribuem de maneira homogênea na sociedade. Pessoas que vivem em comunidades mais pobres tendem a estar mais expostas a certas condições que favorecem o acúmulo de riscos: menor acesso à educação de qualidade, maior prevalência de hipertensão e diabetes mal controlados, poluição, menos oportunidades para prática de atividade física e maior incidência de depressão e isolamento social.  

Essa associação entre ambiente e risco de demência foi descrita em diferentes contextos populacionais. Realizado com mulheres negras idosas nos Estados Unidos, um estudo publicado em 2025 no Alzheimer’s & Dementia Journal mostrou que aquelas que viviam em bairros mais pobres tinham um risco 42% maior de declínio cognitivo em comparação às que moravam em regiões mais favorecidas. Na Nova Zelândia, uma pesquisa com 1,4 milhão de pessoas apontou que, a cada aumento no nível de privação econômica do bairro, o risco de demência crescia entre 6% e 9%. 

O conceito de determinantes sociais da saúde é central para entender como fatores ambientais, socioeconômicos e culturais impactam o risco de doenças neurológicas, incluindo a demência. “Sabe-se que condições de vida mais adversas, como pobreza, violência urbana, insegurança alimentar, exposição crônica ao estresse, poluição e acesso limitado a estímulos cognitivos, podem aumentar a vulnerabilidade cerebral”, explica o neurologista Iron Dangoni, do Hospital Municipal Iris Rezende Machado – Aparecida de Goiânia (HMAP), unidade pública em Goiás administrada pelo Einstein. 

Publicado em fevereiro na The Lancet Global Health, um estudo conduzido por pesquisadores brasileiros e latino-americanos mostrou como as desigualdades sociais e de saúde impactam a saúde cerebral da população na prática. A pesquisa avaliou dados de 41 mil idosos de cinco países — Brasil, Colômbia, Equador, Chile e Uruguai — usando machine learning, uma técnica de inteligência artificial que permite aos computadores identificar padrões e fazer previsões com base em grandes volumes de dados, para apontar os principais fatores associados ao declínio cognitivo e funcional.  

No caso brasileiro, a escolaridade baixa emergiu como o principal fator de risco para perdas cognitivas, enquanto sintomas de saúde mental, como depressão e ansiedade, foram os maiores preditores de piora na capacidade funcional (a habilidade de realizar tarefas básicas do dia a dia, como se alimentar, tomar banho ou se locomover). Assim como identificaram os pesquisadores da Universidade Rush, a análise apontou que fatores sociais e de saúde têm mais influência sobre o cérebro do que características demográficas tradicionais, como idade e sexo. 

A pesquisa também revela diferenças regionais dentro do Brasil: idosos das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste apresentaram melhor desempenho cognitivo em comparação aos das regiões Norte e Nordeste. Os autores concluíram que, para promover um envelhecimento saudável na América Latina, políticas públicas precisam priorizar educação de qualidade, atenção à saúde mental e redução das desigualdades sociais desde as fases iniciais da vida. 

Prevenção integral 

Na visão de Dangoni, para enfrentar o problema de maneira eficaz e ética, é fundamental adotar estratégias de saúde pública baseadas em intervenções comunitárias e estruturais, em vez de responsabilizar apenas os indivíduos. “Essas iniciativas precisam ser intersetoriais, considerando não apenas o sistema de saúde, mas também políticas de educação, habitação, transporte e segurança pública”, pontua o neurologista. 

Nos últimos anos, diversos países começaram a tratar a prevenção da demência sob esse viés. No Reino Unido, o programa Dementia Prevention, coordenado pelo Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês), inclui ações de promoção da saúde cardiovascular, estímulo à atividade física, combate ao isolamento social e incentivo à educação continuada como formas de reduzir o risco de demência. Nos Estados Unidos, a Healthy Brain Initiative, liderada pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), atua em parceria com governos estaduais para integrar a saúde cerebral a políticas locais, priorizando comunidades vulneráveis.  

No Brasil, o enfrentamento da demência avança devagar — e ainda esbarra em desafios como o subdiagnóstico. Segundo uma estimativa do Relatório Nacional sobre a Demência, divulgado pelo Ministério da Saúde em setembro de 2024, em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mais de 70% dos idosos brasileiros com demência não recebem diagnóstico formal. “Há uma necessidade de melhorar a educação em saúde da população para reconhecer sinais precoces e combater estigmas associados ao envelhecimento e às doenças cognitivas, ou seja, não considerar que tudo é pela idade”, destaca Dangoni. 

Criada em 2024, a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências (Lei nº 14.878/24) estabeleceu diretrizes para diagnóstico, tratamento e apoio a cuidadores. Embora o foco da política siga concentrado na assistência em saúde, o artigo 7º prevê o apoio do SUS à pesquisa e ao desenvolvimento de tratamentos em colaboração com instituições nacionais e internacionais — o que pode abrir caminho para iniciativas voltadas aos determinantes sociais, caso esse escopo venha a ser incorporado por meio de projetos de inovação, financiamento e compartilhamento de dados. 

“A população brasileira está envelhecendo em uma velocidade brutal. Nenhuma outra população no mundo envelheceu como a gente”, destaca Zimmer. “Estamos em um momento importante de entender que precisamos focar em reduzir o número de pessoas que vivem em vulnerabilidade social.” 

Fonte: Agência Einstein