Atentados interromperam transporte e vacinação na capital do Amazonas. Descontrole nos presídios, falta de coordenação entre órgãos públicos e pouco uso de inteligência favorecem facções.Da noite de sábado (05/06) à manhã de segunda-feira, Manaus e outras seis cidades do estado do Amazonas enfrentaram uma onda de ataques promovidos por criminosos sob o comando de líderes presos, que afetaram o cotidiano de milhares de pessoas, com suspensão do transporte coletivo, do atendimento do governo à população e da vacinação contra a covid-19.

Os criminosos incendiaram pelo menos 29 veículos, dos quais 15 ônibus, atacaram oito prédios públicos com tiros e provocação de incêndios, e vandalizaram sete agências bancárias. Os alvos incluíram uma delegacia, na qual foi atirada uma granada que não explodiu, e uma Unidade Básica de Saúde, onde houve um princípio de incêndio.

Em Manaus, além da interrupção do transporte, da vacinação e dos atendimentos médicos sem urgência, foi suspensa a entrega de cestas básicas a famílias afetadas pela cheia do Rio Negro. Os serviços públicos foram retomados nesta terça, após cessarem os ataques.

A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas afirmou que a ordem para os atentados veio de dentro de um presídio de Manaus, após Erick Batista Costa, integrante do alto escalão do Comando Vermelho no estado, ter sido morto no sábado na cidade durante uma operação da Polícia Militar. Desde o início dos ataques, 35 pessoas foram presas, e na segunda-feira o ministro da Justiça, Anderson Torres, anunciou que enviaria tropas adicionais da Força Nacional ao estado, a pedido do governador Wilson Lima (PSC).

Facções que atuam em Manaus

As duas principais organizações criminosas ativas na capital amazonense são a Família do Norte (FDN), nascida na periferia de Manaus em 2007, e o Comando Vermelho, originado no Rio de Janeiro no final da década de 1970. O paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) também está presente, mas tem menos peso, segundo Rafael Alcadipani, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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O ponto de maior interesse das facções no estado é o controle de rotas de tráfico de cocaína produzida na Colômbia. A partir do Amazonas, a droga pode ser escoada para outras regiões do Brasil e para o exterior.

“É uma forma de as facções terem uma janela para o Atlântico Sul, para exportar para Europa, África e para o próprio Brasil”, diz Alcadipani. Essas rotas também são utilizadas para transportar drogas produzidas no Peru e na Bolívia.

Atuação desimpedida nos presídios

No caso dos recentes ataques em Manaus, o próprio poder público reconheceu que a ordem para os atentados veio de dentro de um estabelecimento prisional, padrão verificado em outras ondas de ataques semelhantes em diferentes estados.

Isso ocorre, entre outros motivos, porque a situação nas penitenciárias do Amazonas, assim como em outras unidades da Federação, é de “completo descontrole”, o que favorece a atuação desimpedida das facções nesses locais, segundo Alcadipani.

“O Estado brasileiro é incapaz de controlar os presos sob sua própria custódia, o que faz com que as facções consigam comandar o crime a partir de dentro da cadeia”, diz o professor da FGV. A comunicação com o mundo de fora do presídio se dá por meio do uso de celulares, visitas e conversas com advogados.

A atuação das facções também está por trás de diversos confrontos e rebeliões em presídios que deixaram centenas de mortos nos últimos anos. Uma das crises mais graves ocorreu nas duas primeiras semanas de janeiro de 2017, quando confrontos entre facções deixaram mais de 130 presos mortos no Brasil, dos quais 56 no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus.

Em maio de 2019, uma nova explosão de violência provocou a morte de 55 detentos no estado do Amazonas. Dois meses depois, uma briga entre facções em um presídio em Altamira, no Pará, deixou 57 mortos, dos quais 16 foram decapitados.

“As grandes facções criminosas brasileiras são de base prisional, nasceram nos presídios e sua força vem daí. Muitas exercem grande controle dos presídios e recrutam seus membros nas cadeias. Quando essas pessoas saem, continuam vinculadas a essas facções”, afirma Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé.

Como superar esse problema

A principal falha na atuação do Estado brasileiro que favorece a expansão e a atuação das facções nos presídios e fora deles é a falta de articulação entre órgãos públicos estaduais e federais, afirma Alcadipani.


As organizações criminosas atuam em nível nacional, com conexões internacionais, e o cerne da política de segurança para combatê-las ocorre de forma isolada, nos estados. O correto, segundo ele, seria articular forças-tarefas com polícias civis e militares de diferentes estados, Polícia Federal, Ministério Público, Poder Judiciário e, no caso da região amazônica, o Exército, “para conseguir ir secando as fontes financeiras das facções”.

Além disso, o uso de inteligência para mapear o funcionamento e financiamento das facções é escasso. No lugar, adota-se uma postura reativa para conter crises com o uso de força bruta, diz o professor da FGV.

“Usar inteligência é raríssimo, ficamos no mesmo roteiro. Espera-se o problema acontecer, quando acontece chama a Força Nacional, e por aí vai. A chave da segurança pública hoje é a truculência, e não a inteligência, fruto de uma mentalidade primitiva e atrasada para a resolução de conflitos”, afirma.

O envio da Força Nacional, como determinado pelo ministro da Justiça nesta segunda, tem um papel paliativo, segundo Risso, do Instituto Igarapé. “Ela só funciona quando um rápido aumento de efetivo por um curto período de tempo possa ter algum efeito dissuasório. No caso de Manaus, pode ter algum resultado de curtíssimo prazo, mas está longe de resolver o problema”, diz.

Para reduzir a força das facções criminosas nos presídios, especialistas em segurança pública também costumam sugerir diminuir o número de presos provisórios, aplicar mais penas alternativas, aumentar as opções de trabalho e estudo para presos, reformar as penitenciárias e separar os presos provisórios dos condenados. “Além disso, é essencial que haja investimento na prevenção da violência para criar caminhos saudáveis para uma juventude vulnerável”, afirma Risso.


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