Da Austrália aos EUA, protestos contra combustíveis fósseis vão parar na Justiça, gerando até multas bilionárias e prisão. Especialistas identificam tendência antidemocrática.No fim de 2024, uma flotilha de caiaques remou para impedir que um enorme navio cargueiro carregado de carvão atracasse até a faixa de embarque de Newcastle, uma cidade industrial na costa leste da Austrália. Os ativistas climáticos do grupo Rising Tide (Maré Subindo) queriam bloquear temporariamente o maior porto de carvão do mundo e chamar atenção à crise climática provocada pela queima de combustíveis fósseis.
O governo do estado de Nova Gales do Sul e a polícia tentaram impedir o bloqueio nos tribunais. Mas, depois que um juiz suspendeu a ordem que criava uma zona de exclusão no porto, os manifestantes detiveram o cargueiro por mais de 30 horas.
Cerca de 170 ativistas acabaram presos, e a maioria pode enfrentar multas de até 22 mil dólares australianos (R$ 78 mil) ou dois anos de prisão, de acordo com uma lei de 2022.
Em resposta a bloqueios anteriores por ativistas climáticos, a legislação criminaliza interrupções a infraestruturas públicas importantes, como estradas, túneis e portos. Para o então procurador-geral, as leis anteriores não penalizavam suficientemente o "grande inconveniente que incidentes como esses causam à comunidade", além dos "graves impactos financeiros" devido à perda de produtividade.
Criminalização em alta
Para o porta-voz do Rising Tide, Zack Schofield, que também foi preso, a lei estadual é usada "para atingir quase exclusivamente os manifestantes climáticos". Em 2022, a primeira ré sob a nova legislação participava de uma ação de ativismo climático, bloqueando uma faixa da Ponte da Baía de Sydney, e recebeu inicialmente uma sentença de 15 meses.
Deputada do Partido Verde na Assembleia Legislativa de Nova Gales do Sul, Sue Higginson classificou a prisão como antidemocrática, afirmando que cidadãos não devem ser punidos por participar de "formas legítimas de discordância e desobediência civil”.
Um em cada cinco ativistas pelo clima e o meio ambiente é preso na Austrália, a maior taxa no mundo democrático, de acordo com um estudo de 2024 sobre a criminalização dos protestos climáticos da Universidade de Bristol, no Reino Unido.
Severas leis severas antiprotesto foram aprovadas em toda a Austrália, que é a terceira maior exportadora de combustíveis fósseis do mundo. Isso inclui o estado insular da Tasmânia, onde protestos em locais de exploração madeireira em florestas antigas podem resultar em multa de 13 mil dólares (R$ 70 mil) ou pena de dois anos de prisão.
"Ataques sistemáticos" na Europa
Leis antiprotesto semelhantes já foram promulgadas na Europa e nos Estados Unidos. Segundo a Anistia Internacional, em 21 países europeus há um "padrão abrangente de ataques sistemáticos" que "prejudica protestos pacíficos".
No Reino Unido, emendas recentes à Lei de Ordem Pública conferem à polícia maior poder para agir em caso de "perturbação grave" causada por protestos públicos. Cinco ativistas da Just Stop Oil, organização contrária à dependência dos combustíveis fósseis, foram indiciados criminalmente sob a lei revisada, por organizar o bloqueio de uma rodovia em 2022.
Acusados de conspiração para criar "perturbação da ordem pública", os manifestantes foram condenados a quatro a cinco anos de prisão em 2024, antes de terem suas penas ligeiramente reduzidas.
As sentenças são consideradas as mais longas por protesto não violento, na história jurídica britânica, quase igual à sentença máxima, de cinco anos, para agressão com agravante, observou a ONG Global Witness, que monitora a criminalização e o assassinato de defensores ambientais.
Também em 2024, na Alemanha, membros do movimento não violento Letzte Generation (Última Geração) foram indiciados por "formação de organização criminosa". Já na Holanda, leis antiterrorismo e forças militares foram usadas para reprimir ações climáticas, inclusive o bloqueio de uma estrada de Haia, em 2023.
Litígios estratégicos
Ativistas climáticos também enfrentam litígios por indenização de empresas de combustíveis fósseis por interrupções provocadas pelos protestos. Tais processos estratégicos contra a participação pública (SLAPP, na sigla em inglês) atingiram o auge em março de 2025, quando um júri na Dakota do Norte, EUA, considerou o Greenpeace responsável por danos de mais de 660 milhões de dólares (R$ 3 bilhões) por sua participação no bloqueio de um oleoduto.
A ação foi iniciada pela petroleira Energy Transfer Partners, que há anos enfrenta resistência contra a construção de um oleoduto atravessando a Dakota do Norte, especialmente por povos indígenas locais, que organizaram um protesto de projeção internacional.
"Isso faz parte de um novo movimento das corporações para usar nossos tribunais como armas para silenciar a dissidência", disse Sushma Raman, diretora executiva interina do Greenpeace nos EUA. A indenização poderia forçar a organização a encerrar suas operações no país.
Disputa política e judicial
No Reino Unido, leis antiprotesto foram elaboradas em consulta com o think tank de direita Policy Exchange, que faz abertamente lobby para o petróleo e o gás natural, explica o professor da Universidade de Bristol Oscar Berglund. Para ele, a tendência de processos judiciais confirma o crescente impacto do movimento climático: "Os manifestantes se tornam alvo quando são bem-sucedidos."
Mas na opinião de seu colega Luke McNamara, Universidade de Nova Gales do Sul, tais ações punitivas também refletem uma "intolerância crescente" perante os distúrbios causados pelos manifestantes climáticos que recorrem à desobediência civil pacífica.
"Os políticos australianos expressam regularmente sua grande afeição pelo direito de protestar", no entanto esse princípio "tende a virar pó toda vez que um protesto climático inovador ganha atenção", comenta o professor.
Em Newcastle, para cerca de 130 manifestantes do Rising Tide que se declararam inocentes permanece a incerteza quanto à severidade das possíveis multas ou sentenças de prisão a que estarão sujeitos.
"Se as penas forem desproporcionais, vamos recorrer", antecipa Schofield, num processo que pode se tornar um caso precedente para a disposição dos tribunais de criminalizar a dissidência ambiental na Austrália e mais além.