O plano de golpear o Estado brasileiro e contrariar a vontade popular das urnas ao impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contou com o aval e planejamento do então presidente Jair Bolsonaro (PL), ministros do governo federal, militares de alta patente e civis aliados ao então chefe do Executivo, segundo a Polícia Federal (PF). Cada um contava com uma “missão” específica no enredo golpista, conforme as investigações, com atuação estruturada dos suspeitos em seis núcleos.

O objetivo era descredibilizar o sistema eleitoral, incitar os quartéis e, por fim, com o aval do alto comando das Forças Armadas, cruzar a linha da Constituição. Os insurgentes, no entanto, falharam em um ponto essencial da trama criminosa: não arregimentaram a unidade da tropa.

A decisão do ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao autorizar a operação Tempus Veritatis, revelou o conluio de integrantes do governo federal com militares na orquestração do golpe. Faltou o apoio do alto comando das Forças Armadas, como descrito pelos investigadores: “Frustrada a consumação do golpe de Estado por circunstâncias alheias à vontade dos agentes”.

A investigação demonstrou que os suspeitos atuaram, sabidamente à margem da lei, desde o final do segundo turno das eleições presidenciais, em um plano para subverter o Estado Democrático de Direito. Um dos alvos dos golpistas, Alexandre de Moraes diz na decisão que a “expectativa dos investigados em obter êxito na referida empreitada criminosa permaneceu durante o mês de dezembro, adentrando, inclusive, em janeiro de 2023, já durante o mandato do atual presidente da República, principalmente quando se desencadearam os atos golpistas do dia 08 de janeiro de 2023”.

O enredo criminoso começou a ser desenhado antes do pleito presidencial de 2022. Em 5 de julho de 2022, diante do crescente desinteresse do brasileiro pelo voto, Bolsonaro se reuniu com os então ministros Anderson Torres (Justiça), general Paulo Sérgio Oliveira (Defesa), Augusto Heleno (GSI), com o ex-ministro general Walter Braga Netto (Casa Civil), e com o general Mário Fernandes, então chefe-substituto da Secretaria-Geral da Presidência, entre outros, para tratar sobre o processo eleitoral que se avizinhava.

O chefe do Executivo reforçou a necessidade de propagar desinformações contra a Justiça Eleitoral, em uma tentativa de descredibilizar uma possível vitória do candidato opositor, Lula, “com a finalidade de manutenção e permanência de seu grupo no poder”.

“A reunião, segundo a Polícia Federal, também teve como finalidade cobrar dos presentes conduta ativa na promoção da ilegal desinformação e ataques à Justiça Eleitoral: promoção e difusão, em cada uma de suas respectivas áreas, desinformações quanto à lisura do sistema de votação, utilizando a estrutura do Estado brasileiro para fins ilícitos e desgarrados do interesse público”, diz Moraes na decisão.

Essa seria uma das frentes do grupo golpista no “núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral” que tinha o objetivo, segundo a PF, de estimular os bolsonaristas a manterem-se em frente aos quartéis para “criar o ambiente propício para a execução de um golpe de Estado”.

“Essa narrativa serviu, como um dos elementos essenciais, para manter mobilizadas as manifestações em frente às instalações militares, após a derrota eleitoral e, com isso, dar uma falsa percepção de apoio popular, pressionando integrantes das Forças Armadas a aderirem ao golpe de Estado em andamento”, afirma o ministro do STF.

Em outra frente, Filipe Garcia Martins Pereira, então assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, atuou na ala radical do governo. Ele entregou a Bolsonaro um documento que detalhava “considerandos” a respeito de supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e, ao final, decretava a prisão de diversas autoridades, entre elas os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do STF, além do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A PF acredita que o ex-presidente teve participação direta na edição da “minuta golpista” que circulou entre seus aliados após o segundo turno das eleições.

“Na ocasião em que Filipe Martins estava acompanhado do advogado Amauri Feres Saad, Jair Bolsonaro teria lido e solicitado que Filipe alterasse as ordens contidas na minuta. O representado, então, retomou alguns dias depois ao Palácio da Alvorada, acompanhado do referido jurista, com o documento alterado, conforme as diretrizes dadas”, diz a decisão de Moraes.

Após os ajustes pedidos pelo ex-chefe do Executivo, Bolsonaro teria concordado com os termos e convocado os comandantes das Forças Armadas, almirante Almir Garnier (Marinha), general Freire Gomes (Exército) e o brigadeiro Batista Júnior (Aeronáutica), para que comparecessem ao Palácio da Alvorada, no mesmo dia, “a fim de apresentar-lhes a minuta e pressioná-los a aderir ao golpe de Estado”.

Era o primeiro passo para a campanha intimidatória que seria levada a cabo contra o comando das Forças Armadas na tentativa de angariar o apoio e a unidade da tropa para o golpe. Nomes ligados ao Palácio do Planalto foram, segundo a PF, os responsáveis pelo contato e pela pressão contra os comandantes. Braga Netto e o ex-ajudante de ordens da Presidência Mauro Cid se concentraram na escolha de alvos, para a “amplificação de ataques pessoais direcionados a militares em posição de comando, que resistiam às investidas golpistas, em coordenação de condutas que identificam o núcleo responsável por incitar militares a aderirem ao golpe de Estado”.

Em uma das conversas interceptadas, a PF detalha que Mauro Cid tinha a ciência que o apoio das Forças Armadas seria essencial para o plano: “Porque se não for, se a Força não incendiar, é o status quo que mantém aí como o que estava previsto, que estava sendo feito, que estava sendo levado nas reuniões em consideração, tá?”.

Como mostrou o Estadão, a tentativa de desacreditar o Alto Comando do Exército (ACE) era parte fundamental da conspiração nascida dentro do Palácio do Planalto para dividir a corporação, colocar a tropa contra os comandantes que resistiam à ideia e consumar o golpe de Estado.

Uma das frentes dessa estratégia era desacreditar os comandantes os acusando, por meio do “gabinete do ódio” nas redes sociais. A investigação da Polícia Federal expôs o bastidor deste processo de fritura ao encontrar mensagens nas quais Braga Netto relata que o então comandante do Exército, Freire Gomes, estava omisso e indeciso sobre o golpe.

O ex-ministro da Casa Civil liderou uma campanha velada, mas agressiva, de pressão a oficiais das Forças que rejeitaram aderir ao plano golpista articulado por Bolsonaro e por seus aliados mais próximos.

Conversas recuperadas pela PF mostram como o então comandante do Exército entrou na mira do ministro. Em um dos diálogos, em dezembro de 2022, Braga Netto afirma que a “culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do general Freire Gomes”. “Omissão e indecisão não cabem a um combatente”, acrescentou o ministro. “Oferece a cabeça dele. Cagão.”

As mensagens foram trocadas com o capitão reformado do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros, preso pela Polícia Federal na investigação sobre as fraudes nos cartões de vacina.

Braga Netto também atacou o tenente-brigadeiro Carlos Almeida Baptista Júnior, que na época era comandante da Aeronáutica, chamado de “traidor da pátria”. “Inferniza a vida dele e da família”, orientou o ministro.

A PF descobriu que os aliados mais radicais de Bolsonaro chegaram a articular, com oficiais de alta patente, uma carta ao comandante do Exército para servir como “instrumento de pressão”.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) também destacou que teriam sido coordenados “ataques pessoais a militares indecisos sobre a adesão ao plano de golpe de Estado”.

A resistência do alto comando das Forças ao golpe foi demonstrada em outra conversa interceptada pela PF. Em uma das mensagens anexadas ao relatório, o coronel reformado do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros critica os comandantes por estarem “dificultando a vida do PR” ao “se colocar contra” a trama golpista.

“Nesse sentido, mais uma vez, a investigação identifica um elemento informativo ratificando que os investigados tentaram executar um golpe de Estado, para manter o então presidente Jair Bolsonaro no poder, que não se consumou por circunstâncias alheias a suas vontades”, diz a PF.

A contrariedade por parte da tropa também foi registrada em uma conversa entre o coronel do Exército Marcelo Costa Câmara, então assessor especial da Presidência, e Mauro Cid. Câmara é apontado como integrante do núcleo que alimentava Bolsonaro com informações que o ajudariam a consumar o golpe de Estado. Ele foi um dos presos preventivamente na operação desta quinta-feira.

Câmara encaminha para Mauro Cid uma mensagem atribuída ao então comandante militar do Sul, Fernando Soares e Silva, em que o militar repreende a tropa por “eventuais adesões da ativa” a “esse tipo de iniciativa”, afirmando ser “inconcebível”. Em resposta, Cid diz apenas: “Já era o esperado”.

O Estadão mostrou que alguns dos principais integrantes do comando eram contrários à aventura golpista. Eram generais com comando de tropa, como Tomás Miguel Ribeiro Paiva (comandante militar do Sudeste), Richard Nunes (comandante militar do Nordeste), Fernando Soares e Silva (comandante militar do Sul) e André Luiz Novaes Miranda (comandante militar do Leste).

No dia 24 de novembro, o comandante do Exército, Freire Gomes, participou, segundo a delação do tenente-coronel Cid, de reunião com o presidente Bolsonaro. Nela, Bolsonaro consultou os chefes militares sobre um plano para de um golpe, cancelando as eleições. Garnier, segundo Cid, teria colocado suas tropas à disposição do presidente. Freire Gomes reagiu. Disse – de acordo com a versão de Cid – não ao golpe. Mas não informou ao Ministério Público Federal ou a qualquer outra autoridade o conteúdo da conversa.