Para muitos, a recente tentativa de assassinato do escritor britânico Salman Rushdie é apenas um problema distante. Alguns acham que o caso trata dos limites de criação artística diante da necessidade de tolerância religiosa, mas tudo restrito ao mundo anglófono – quem sabe, uma vingança até compreensível (mesmo que não justificável) em função dos erros cometidos pelo Ocidente no Oriente Médio.

Mas o ataque bárbaro tem muito a ver com o momento atual que o mundo atravessa, inclusive o Brasil. A polarização e o extremismo tentam limitar o debate e o próprio pensamento. As redes sociais e a internet ajudaram a criar a cultura
do cancelamento, e vários autores são ameaçados ou correm o risco de serem banidos. Na maior parte do mundo, é bom lembrar, ainda prevalece a censura e a perseguição. A política instrumentaliza a religião, como a largada da campanha eleitoral no País reafirmou mais uma vez.

Um dos principais livros de Rushdie, Os filhos da meia-noite, é inspirado no realismo mágico, que transformou o cruel quadro social e a opressão política na América Latina em poderosa invenção literária. Que um escritor nascido na Índia dialogue com essa tradição antípoda diz muito sobre sua curiosidade e capacidade de empatia. O autor, nessa obra, também lida de forma simbólica com um passado inescapável: a separação da Índia do Paquistão, que colocou duas religiões em guerra, dividiu famílias e era considerada por Gandhi uma tragédia.

O ataque ao autor tem a ver com o momento atual e também com o Brasil. O extremismo político e religioso quer calar o debate e o pensamento

Rushdie não é um ativista político. Trata da ambiguidade e da alegoria como forças transformadoras e chaves de interpretação do mundo. Mas, no plano concreto, é um determinado defensor da liberdade de criação artística. Faz parte de uma geração de escritores que saíram da esquerda para questionar a condescendência com os crimes do comunismo e renovar a literatura britânica nos anos 1980.

O escritor mostra que os valores iluministas ainda estão em jogo. Ele lembra que a liberdade de manifestação não é apenas um luxo ocidental, mas um valor universal que precede todos os outros. Para ele, a esquerda atual comete um erro histórico ao defender que pessoas que se sintam ofendidas tenham o direito de revidar – como o fundamentalismo agiu para tentar matá-lo. Esse alerta vale para a cultura identitária e divisiva que colocou extremistas no poder e tenta monopolizar a política. Nesse caso, a esquerda e os novos autocratas de direita são igualmente culpados.