O futebol brasileiro nunca esteve tão perto de criar uma liga de clubes como agora. Discussão antiga no País, com várias iniciativas que não saíram do campo dos planos – e quando saíram não foram para a frente, caso da Primeira Liga, enterrada antes de completar três anos -, desta vez tem chances maiores de sair do papel. Há uma associação criada para organizar os Campeonatos Brasileiros das séries A e B, a Libra (Liga do Futebol Brasileiro), grupos interessados na operação e até a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) deu o aval.

Historicamente resistente a perder o controle do futebol nacional, a CBF abriu caminho para que os clubes coloquem a iniciativa em prática. Foi um acerto feito em troca da eleição, sem restrições, de Ednaldo Rodrigues à presidência da entidade. Desde então, os principais times do Brasil, como Flamengo, Corinthians e Palmeiras, se movimentam para convencer seus pares da Série A e B a assinar a criação da liga.

Todos os dirigentes questionados pelo Estadão dizem ser a favor da existência de uma liga independente da CBF, querem novo calendário, além de outras mudanças no futebol.

No final da primeira quinzena de março, em uma reunião em São Paulo, foi formalizada aos clubes brasileiros uma proposta de modelo de gestão, apresentada pela LaLiga, que organiza o Campeonato Espanhol, em conjunto com as empresas XP e Alvarez & Marsal. E existem outros grupos interessados em gerir a liga brasileira, como a Codajas Sports Kapital, ligada ao BTG, e a Livemode, em parceria com a 1990.

Há a perspectiva de um investimento vultoso. O cenário parece ser favorável à elaboração dessa organização. Tudo o que for decidido agora só vai valer para 2025, quando os atuais contratos acabam.

No entanto, há um fator importante que coloca uma sombra sobre as discussões: a desunião dos clubes, velho problema no futebol, projetada porque cada um olha para a sua bandeira e não para o fortalecimento das competições. Agora, os dirigentes estão admitindo, pelo menos, a necessidade de os clubes se unirem em torno de um interesse comum.

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Os representantes dos 40 clubes ainda não se acertaram, porém, sobre o modelo de rateio do dinheiro de TV. “Temos certeza de que a Liga é o melhor para o futebol brasileiro. Demoramos para agir e precisamos fazer acontecer. Para isso, precisamos nos unir. É difícil, no entanto, ter todos na mesma mesa”, reconhece Duílio Monteiro Alves, presidente do Corinthians.

Quem ganha menos quer ganhar mais. Quem ganha mais quer mais ainda. O impasse, portanto, é um só: como dimensionar a cota de dinheiro de cada um, de modo a deixar todos satisfeitos. A promessa é de que nenhum clube receberá menos do que hoje.

“Se o futebol brasileiro melhorar, todos que operam nele vão se beneficiar. É esse espírito que tem de prevalecer. Os clubes têm de pensar que, se o produto for melhorado, vai ter mais valor”, explica ao Estadão Fred Luz, executivo da consultoria Alvarez & Marsal. “Não é preciso inventar a roda. Os clubes têm de ver o que já foi feito e decidir. Precisam definir como vão caminhar para chegar a esse mundo ideal”, adverte Luz, que foi durante quatro anos diretor do Flamengo.

A presidente do Palmeiras, Leila Pereira, tem assumido papel de destaque na criação da liga, mas já avisou que não perderá seu tempo com reuniões vazias. “O Palmeiras não vai participar de encontros que não tenham um objetivo. Eu sou uma mulher objetiva. Não vou em reunião de três ou quatro horas para discutir o que não existe”, disse Leila.

DIVISÃO DO BOLO.

As discussões chegaram a alguns números. Todo o dinheiro de TV seria repartido da seguinte maneira; 45% de forma igualitária, 25% referentes a resultado esportivo (posição na tabela de classificação) e 30% de acordo com audiência. Por ora, as negociações não avançaram além disso. Times como Flamengo recebem até R$ 150 milhões de direitos de TV.

Existem duas correntes ao redor da mesa. De um lado estão os clubes que fundaram a Libra e os que aderiram a ela. São dez: Corinthians, Palmeiras, Santos, São Paulo, Red Bull Bragantino, Ponte Preta, Flamengo, Vasco, Botafogo e Cruzeiro. Seus representantes fazem um trabalho de convencimento dos demais.

Na última segunda-feira, 25 clubes participaram de um encontro no Rio. Foram eles: América-MG, Atlético-GO, Atlético-MG, Athletico-PR, Avaí, Ceará, Coritiba, Cuiabá, Fluminense, Fortaleza, Goiás, Internacional, Juventude, Brusque, Chapecoense, CRB, Criciúma, CSA, Guarani, Londrina, Náutico, Operário, Sampaio Corrêa, Sport e Vila Nova. Uma comissão com alguns desses times foi formada para discutir em bloco as necessidades dos “mais fracos.”

O mais próximo que o futebol brasileiro chegou de uma liga forte foi quando esteve submetido ao Clube dos 13, entidade que tomava a frente nas negociações comerciais. Esse grupo vigorou de 1987 e 2011, mas implodiu porque Flamengo e Corinthians entendiam que deveriam ficar com mais dinheiro.

A divisão do bolo, dos direitos de transmissão das partidas, é o calcanhar de Aquiles da liga, fator que provoca discordância entre os dirigentes e impede um acordo imediato. Na reunião com os clubes, Tebas, o presidente de LaLiga, usou a expressão “incomodado e satisfeito” para dizer que sempre vai haver uma parte desconfortável em relação à partilha das receitas.

“Nem todos ficarão confortáveis nesse tipo de acordo. Sempre haverá alguém incomodado”, admite Fred, o executivo da Alvarez & Marsal. Sua sugestão é diminuir gradativamente a disparidade financeira entre os que ganham mais e os que recebem menos.


A relação entre um clube que leva mais dinheiro e outro que fica com uma quantia menor é da ordem de 1 para sete no Brasil atualmente. Uma diferença consideravelmente maior em comparação com as ligas europeias. “Você vê que há uma assimetria muito grande que afeta o desempenho esportivo”, observa. “Na Espanha, a disparidade era maior. Começou com a relação de 1 para 7. Com o aumento das receitas, os clubes que ganhavam menos foram reduzindo essa diferença.”

Recentemente, Ronaldo Fenômeno mostrou incômodo com a falta de união entre os clubes, admitiu estar pessimista com o andamento das negociações e pediu que os cartolas se esforcem para achar uma saída boa para todos.

“Se continuar assim, vai ser difícil que a gente chegue em um consenso e evolua nas negociações. Quero pedir para que sentemos e discutamos as possibilidades abertamente”, disse Ronaldo. O gestor do Cruzeiro só vê benefícios na Liga. “Vai padronizar muitas coisas, vai aumentar as receitas de todos os clubes e vai melhorar a qualidade de transmissão e a imagem do nosso futebol.”

FUNCIONAMENTO

Mas como funcionaria a liga? Com ela, os clubes assumiriam a negociação dos direitos de TV. Eles se aproximariam dos patrocinadores e decidiriam a divisão do dinheiro – modelo parecido com o implementado no antigo Clube dos 13. Na Espanha, a LaLiga cuida do futebol dos clubes. Nesse novo formato, que valeria somente a partir de 2025 porque os contratos até 2024 já estão assinados, a CBF ficaria apenas com a gestão dos jogos da seleção brasileira.

A ideia é que haja um acordo neste ano para que a estruturação da organização da liga comece em 2023. Segundo o executivo da Alvarez & Marsal, são necessários alguns pilares para uma liga ter valor: qualidade da governança, compliance, ter acompanhamento de como é gasto o dinheiro, controle financeiro dos clubes e negociação centralizada de direitos econômicos.

POTENCIAL

O grupo encabeçado pela LaLiga acredita que o futebol brasileiro tem potencial para estar entre as cinco maiores ligas do mundo e com capacidade de arrecadação. Estimam-se R$ 25 bilhões por temporada. “Mas não se faz isso do dia para a noite. Isso tem de ser construído, pegando as melhores práticas e melhorando-as”, diz Fred.

Presidente do Fortaleza, Marcelo Paz aposta na liga para atrair e manter talentos, além de revolucionar a experiência de jogo para o público. “Com investimento e maior estrutura, você consegue segurar os talentos e atrair jogadores importantes que hoje estão no exterior”, considera. “Outro ponto fundamental é estabelecer um padrão de qualidade para gramado e arenas. Temos de pensar na experiência de jogo como um todo, ações de matchday, espaços para a família, opções de entretenimento e de alimentação nas arenas, internet à disposição.”

O CEO do Botafogo, Jorge Braga, concorda e faz apelo para uma “nova experiência” pensando para além do futebol, como um produto de entretenimento. “É necessário criar um tipo novo de interação com o torcedor. Cada jogo tem de ser um show de entretenimento para quem está no estádio e para quem está em casa. Sei que tudo isso é caro, será necessário educar o público nesse sentido, de pagar”, analisa o executivo.


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