O economista José Roberto Mendonça de Barros acompanha com apreensão o desenrolar do que chama de “a maior crise histórica”. Ex-secretário de Política Econômica no governo Fernando Henrique Cardoso, ele diz que a falta de capacidade de gestão e de rumo para a política econômica no governo de Jair Bolsonaro é o maior empecilho para se conseguir uma recuperação da economia. Ao contrário do que diz o ministro Paulo Guedes, “não haverá retomada em V, em flecha ou em qualquer outro formato, por causa do enorme déficit primário e da falta de perspectivas”. Para o sócio da consultoria MB Associados, o governo só pensa em pautas que garantam a reeleição do presidente. Até a permanência do ministro é uma incógnita, segundo ele, uma vez que “o Posto Ipiranga já não tem mais tanta gasolina como tinha no começo do governo”. Para Mendonça de Barros, não há chance de os investimentos voltarem depois da pandemia, e entre as causas estão os desmontes na área ambiental e na educação.

O País entrou em recessão técnica. A falta de capacidade de gestão do governo piorou a situação?
Acho que sim. Desde antes da pandemia, não havia um programa de governo consistente, com direção clara. Isso também na economia, onde se esperava mais diretriz. Diversos ministérios propõem coisas que não têm nenhuma conexão entre si. Há ações ideológicas na educação e nas relações externas, assim como no meio ambiente. Não há organização nas pautas. Tanto que os ministérios do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura querem reeditar o PAC da Dilma. Isso não tem nada a ver com a revolução liberal proposta por Paulo Guedes.

Não há avanços liberais?
Hoje está claro que não vamos ter em área nenhuma. É só ver que não foram feitas privatizações, por exemplo. Não existe uma visão de conjunto. A única proposta que emerge é o desejo de reeleição. Mesmo antes da pandemia não havia organização, nem na pauta econômica.

Paulo Guedes pode deixar o cargo?
Não tenho ideia. Acho que ele quer ficar, mas não sei quais são as condições. O que está claro é que o Posto Ipiranga tem menos gasolina do que tinha no começo do governo. Outros ministros querem gastar com projetos, alegam que o déficit é tão grande que se colocar mais R$ 50 bilhões em obras públicas não vai fazer diferença para o País voltar a crescer mais rápido. Mas não é o que se vê na prática.

Nessa guinada de rumo, o que diferencia o governo Bolsonaro do de Lula?
Do ponto de vista do programa populista, nada. Querem fazer obras públicas, trazendo de volta um programa que no governo do PT já deu errado, caso do PAC. Milhares de obras ficaram paradas pelo caminho e isso vai se repetir, de olho na reeleição. É um governo populista clássico, só que pela direita.

E as reformas?
O que vimos é uma enorme dificuldade do governo para aprovar seus projetos. A Reforma da Previdência já estava em pauta no Congresso. O Executivo mais atrapalhou do que ajudou. A mesma coisa acontece na reforma tributária e agora na administrativa. A proposta do Executivo levou um ano e meio para aparecer e ninguém sabe o que tem ao certo.

O que está faltando?
Falta saber qual o rumo do governo diante desta que é a maior crise da história. E a maior recessão, mesmo quando comparada com tempos de guerra. Em tempos de paz, é difícil achar na história um período em que o PIB per capta caia 12% a 13%.

Qual será o tamanho do prejuízo?
Nós ainda não vimos todo o custo do vírus. Muitas empresas sairão do mercado. Várias até desejam voltar, mas estão tão fracas que não sobreviverão.

Quais os setores empresariais serão mais atingidos?
O setor de hospitalidade está de joelhos: turismo, hotéis, restaurantes e teatros. E vai demorar até o ano que vem para começar a reagir, assim como a área de Serviços. Há alguns segmentos que vão bem, como o agronegócio, que colherá safra recorde e deve crescer mais de 20%. Tem empresa conseguindo vender bem pela internet, além das áreas de telecomunicações, tecnologia e sistemas financeiros. Mas são os menores que vão mal. Se tem um Magazine Luiza vendendo bem online, por outro lado há uma infinidade de comércios que não vendem. O auxílio ajudou o setor de material de construção, que cresceu no Nordeste e Centro-Oeste. Mas a construção civil, como um todo, não foi beneficiada.

Dá para recuperar?
Nossa projeção para o crescimento no início do ano já era modesta. Depois do vírus, a agenda foi atropelada. Seria preciso uma liderança firme, dizendo para onde queremos ir. Mas não vejo isso. Até na área econômica é difícil um consenso. No início, eles eram contra o “coronavoucher”, agora fazem um programa para melhorar o Bolsa Família. O governo precisa saber o que vai fazer com a questão fiscal, porque os programas de enfrentamento da crise já resultaram num gasto extraordinário. O voucher beneficiou milhões de pessoas, mas agora o governo quer rever isso. Já refez sua projeção de déficit primário de R$ 100 bilhões do começo do ano para R$ 900 bilhões até dezembro. Com isso, a relação dívida sobre o PIB vai crescer muito, de 75% do final de 2019 para 95% no final deste ano.

Como resolver essa questão?
É difícil porque parte dos gastos deste ano terá de ser mantida no ano que vem, como a relacionada ao SUS. Além disso, o Bolsa Família deve continuar e será ampliado, mesmo sem espaço no Orçamento, mas não está claro como farão.

De onde vão tirar dinheiro?
A gente sabe que o governo quer aumentar o imposto. Mas precisa ser claro. Coloquem na proposta o que é necessário para financiar tudo. Não deveriam ficar num jogo de gato e rato com imposto que tem cara de leão, pata de leão, juba de leão e o ministro da Economia diz que não é leão.

A retomada já começou?
Sim, o fundo do poço foi abril e maio. E quando se compara com uma base baixinha parece que há uma retomada grande. Mas ainda é pequena. No setor têxtil, a capacidade ociosa era de 70% em abril. Agora, a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) diz que está melhor, só com 50%. Mas ninguém aguenta fábrica funcionando pela metade. Ou seja, não é uma recuperação em V, em flecha ou em qualquer formato que o ministro diga.

E os empregos?
O mercado de trabalho ainda está fraco. Porque quando ocorre uma queda assim não se contrata ninguém. E muitas empresas não devem sobreviver até o final do ano. Basta considerar os milhares de restaurantes e lojas que ficaram fechados por meses, com custos, e agora estão reabrindo com 10% ou 15% da capacidade. É difícil manter. A incerteza em relação ao vírus ainda é grande. Tudo isso afeta o mercado de trabalho.

Como fica a renda das pessoas?
Junho, julho e agosto foram os meses em que as transferências do governo estavam no máximo. Eram 65 milhões de pessoas recebendo R$ 600. Nos últimos quatro meses do ano, o número de beneficiados será menor e o valor será de R$ 300. É menos dinheiro circulando. No ano que vem, só 14 milhões de famílias do Bolsa Família, ou até 25 milhões se o benefício for estendido, receberão algo menor que os R$ 300. Ou seja, o dinheiro circulando vai diminuir.

Qual é a saída?
O que se espera é que a volta do emprego coloque nas mãos das famílias renda que compense a redução das transferências. E aí teremos a recuperação. Mas nossa projeção é de queda do PIB próxima de 5% para 2020 e crescimento de 2,2% em 2021.

Perdemos o bonde da história?
O Brasil desaprendeu a crescer. Fomos bem até 1980. Depois disso, tivemos alguns surtos de crescimento no Plano Real, no boom de commodities da China, no governo Lula. Mas de 2010 para a frente foi um desastre. E a atual proposta não vai trazer de volta o crescimento sustentável. Esse vai e vem da política vai liquidando as finanças públicas e as bases para investimentos. Faz sete anos que estamos com déficits primários enormes. A capacidade do governo de investir é zero e só investe em obra inacabada. E aí inaugura obra três vezes, como no Rio São Francisco.

O setor privado está investindo?
No setor privado tem pouca gente com intenção de investir. Temos empresas com padrão internacional, que nunca param, mas a maioria se arrasta. Na indústria, tem algumas que não conseguem competir com os importados, pois o parque de máquinas tem, em média, 18 anos. Não dá para ser competitivo, e mesmo depois da pandemia não há horizonte para a volta dos investimentos. Sem contar a situação da educação. Tivemos os piores ministros da Educação da história. Sem ensino e sem investimento não há crescimento.

A questão ambiental pode nos prejudicar ainda mais?
Nós vamos apanhar muito pelo que acontece na Amazônia. O descaso com a questão ambiental e o desmatamento ilegal afastam investidores internacionais, o que prejudica ainda mais a taxa de investimento. Hoje, o agronegócio só tem uma ameaça: o meio ambiente. E é mortal.

O que o senhor achou do Orçamento para 2021?
Não é um Orçamento de verdade. Há uma distância entre o que o governo quer e a realidade. Gastos adicionais não estão definidos. A área econômica não mostra qual é o plano, como fez nas reformas da Previdência, tributária e administrativa.

O alinhamento aos EUA é ruim?
Acho lamentável. O Brasil sempre teve grande capacidade de negociar com todo mundo, com o conceito de soft power nas negociações. Muitas coisas foram obtidas assim e hoje estão travadas. É desastrosa a atuação do Itamaraty. Nem os conservadores concordam.

O que ficou de bom?
Só vamos sair disso se percebermos que o mundo está diferente. É preciso dar valor ao meio ambiente e à tecnologia. Ter cabeça aberta, sem preconceitos. A polarização só traz coisas ruins. Hoje não temos só adversários, mas sim inimigos para destruir. Essa atitude, além de antidemocrática, torna mais difícil construir um País melhor.