O homem que fala ao repórter do jornal Extra tenta, timidamente, esconder o rosto. É provável que sinta vergonha por estar ali, por terem-lhe flagrado a mendicância infame, a indigesta fome. Com o dorso preto nu, trajando apenas shorts sujos e humildes sandálias nos pés, ele se acocora e revolve a montanha de restos num caminhão-baú, provando um naco ou outro para se certificar de que o produto não está podre. Entre muitos ossos, há pele e gordura bovinas, antes destinados à fabricação de sabão, cera e ração animal. Agora, servirão para matar a fome dele próprio e dos seus.

O motorista do caminhão, que assiste, apático, ao infeliz espetáculo, sentencia: — Se bobear, vai morrer mais gente de fome que de Covid. Enfim, após oito anos, o que julgávamos sepulto, volta-nos a assombrar. Quando em 2013, a ONU decretou que havíamos saído do Mapa da Fome, esperávamos, a esta altura, ter superado a calamidade humana mais remota e primordial. Mas, em vez de rumar para o futuro, andamos passos largos para trás. Hoje, em cada cem brasileiros, dez não têm o que comer. Dos famintos, as minorias sociais são maioria: negros, nordestinos, mulheres e crianças perfazem aqueles que mais padecem. E nas áreas rurais, o drama é ainda pior. Hoje, não se pode mais dizer que a fome é fruto da falta de comida. Todo ano, o mundo produz 3,8 bilhões de toneladas de alimentos, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Quando em 2013, a ONU decretou que havíamos saído do Mapa da Fome, esperávamos, a essa altura, ter superado a calamidade humana mais remota e primordial

E o Brasil é, atualmente, o terceiro maior produtor e segundo maior exportador de alimentos do mundo. Nosso País poderia alimentar dez por cento da população mundial, porque produz comida suficiente para até 1,6 bilhão de pessoas. Então, como explicar o cruel paradoxo do pobre País rico, que arrota riquezas lá fora e aqui dentro deixa seu próprio povo perecer?

É que a fome do Brasil é gerada pelas escolhas políticas — da política agrária — que fomenta a concentração de terras cultiváveis para grandes produtores e exportadores, à política econômica — que corta gastos em áreas essenciais e programas vitais, gerando desigualdade de oportunidades, de renda, o desemprego, e, por fim, a própria fome. Ainda não é certo dizer se o que conduz as ações dos que nos conduzem é a cegueira social ou o sádico cinismo. Pois, se de um lado, o ministro da Economia sugere que empresários alimentem o povo doando as sobras de seus pratos, o presidente da República afirma que fome é fake news, pois, na média, o brasileiro até engordou na pandemia.