Cá na Terra, cansados de pregarem no deserto — até camelos caíam em profundo sono quando eles falavam —, meia dúzia de gatos pingados de terraplanistas, devoradores de orelhas de livros, só de livros, insurgiram-se contra o chefe: “camelo tem de ruminar!

Não tem de dormir quando a gente fala”. O chefe, acuado, pensou, teve uma ideia e a relatou para Aquilante, seu único interlocutor: “Plutão! Seremos plutãoplanistas, Aquilante!”. “Pelas barbas de Netuno, chefe. Que ideia legal!”. “Netuno não, Aquilante. Plutão”. “Pelas barbas, chefe”. Mas o chefe deu uma esfriada: “só tenho medo, Aquilante, de que lá exista jacaré”. “Tem medo de jacaré, chefinho?”. “Vou te contar uma história triste, Aquilante. Quando eu era bem criança ainda, com uns 17 ou 18 anos, minha mãe rasgou minha boia de jacarezinho que eu usava na banheira”. “Ruim, hein, chefe. Deu trauma. Trauma na cabeça. Mas vou te ensinar: “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que ter jacaré em Plutão”.

Assim, como fugitivos, o chefe, Aquilante e meia dúzia de gatos pingados de terraplanistas, devoradores de orelhas de livros, só de livros, viajaram 55 bilhões de quilômetros, da Terra até Plutão. Desembarcaram e logo viram uma reunião de plutãonenses sob uma faixa: “Comisão Plutãomentar de Inquérito”. Aquilante relinchou. Inspecionavam o local quando foram surpreendidos por meia dúzia de gatos pingados de plutãonenses que fugiam de uma multidão. “O que houve?”, perguntou o chefe. “Somos plutãoplanistas, estamos sendo expulsos”. “E pra onde vocês vão?”. “Pra Terra”. Ouviu-se então uma voz: “olha o sorvete, olha o sorvete”. “Qual o sabor desse sorvete vermelho?”, quis saber o chefe. “Plutão”. “E desse branco?”. “Plutão”. “Idiota. Todos chamam Plutão?”. “Plutão”. “Isso é fake news!”, irritou-se o chefe . O sorveteiro de cabeça plana insistiu: “Plutão”.

Aquilante cutucou o chefe com uma das patas e, com a outra, apontou um maltrapilho. O chefe foi ter com ele: “como você se chama?”. “Estragon”. “De onde você veio, da Terra?”. “En attendant Godot”. “Eu não entendo latim”, disse o chefe. Virou-se. Por todos os lados, voltou a voz: “olha o sorvete, olha o sorvete…”. Aquilante deu pra falar “cavaliere medievale da Norcia…, cavaliere medievale da Norcia…”, e a voz: “olha o sorvete, olha o sorvete”… o chefe berrou: “voce é louco de vender sorvete aqui em Plutão com temperatura negativa de 220 graus!”. O sorveteiro retrucou: “gripezinha, GRIpezinha, GRIPEzinha, GRIPEZInha, GRIPEZINHA”… – “Acorda, Excelência, acorda, o senhor está tendo um pesadelo!”… “Nossa, doutor, sonho confuso, sonhei com Plutão…. acho até que urinei na cama”. “Fique calmo, Excelência, vou lhe dar o remedinho: enfermeiroooo, traz a cloroquina!”.