PlatôBR: Quaquá, o vice nacional do PT que virou sheik no Rio

Em conflito permanente dentro do PT por suas declarações e atitudes polêmicas, vice-presidente nacional do partido é também cartola, dirigente de escola de samba e "dono" de um orçamento polpudo graças aos royalties do petróleo. A legenda o tolera por um motivo simples: hoje, ele é um dos políticos mais poderosos do Rio de Janeiro

Reprodução/Redes Sociais
Washington Quaquá Foto: Reprodução/Redes Sociais

Apenas uma das 16 escolas que disputam na Sapucaí a Série Ouro, antigo Grupo de Acesso vai subir neste ano para a elite do carnaval carioca. Na quinta-feira seguinte ao desfile, quando as notas dos jurados começarem a ser apuradas, o prefeito Washington Quaquá, vice de Gleisi Hoffmann no comando nacional do PT, estará próximo de um lugar até hoje só ocupado pelo bicheiro Castor de Andrade: virar patrono, ao mesmo tempo, de uma escola da elite do samba carioca e de um clube de futebol. O Maricá Futebol Clube já está na primeira divisão do campeonato estadual, com vitória inclusive sobre o campeoníssimo Botafogo. Resta agora a escola União de Maricá confirmar o favoritismo na Série Ouro e ascender ao Grupo Especial, ficando ao lado das grandes.

No auge da popularidade, Castor tirava o máximo proveito da posição de patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, campeã em 1990 e 1991, e do Bangu Atlético Clube, vice-campeão brasileiro em 1985. Flanava na Marquês Sapucaí, à frente da sua escola, e acompanhava os jogos do Bangu à beira do gramado, muitas vezes com uma arma na cintura. Para o bicheiro, a escola e o time o ajudavam a construir a imagem de benfeitor do povo, subindo uma cortina de fumaça sobre as suas ações ilícitas.

Com Quaquá, não se sabe exatamente onde essa popularidade pode chegar. No carnaval de 2024, o que o prefeito menos fez foi se debruçar sobre a sacada do seu camarote na Sapucaí, batizado de “Favela”, para ver as escolas de samba passarem. Estava mais interessado em receber políticos e gente influente na sala vip, oferecendo whisky e tira-gostos. É raro, também, vê-lo assistindo aos jogos do Maricá. Quem conhece Quaquá sabe que ele não fica muito tempo focado em algo. Não é carismático. Não faz questão de agradar. Mas aonde vai, há fila para o beija-mão.

Na carteira de identidade, Quaquá é Washington Luiz Cardoso Siqueira, de 53 anos. O apelido, segundo ele, foi dado por amigos de infância porque, na comunidade onde morava, ninguém sabia falar Washington, nome escolhido pelo pai – “pobre adora nome difícil”. Dos tempos de pobreza, só restam memórias.

Quaquá é hoje um dos políticos mais poderosos do Rio de Janeiro. Pouco se importa com o mal-estar causado por suas declarações e gestos, que incomodam inclusive seus correligionários no PT. Com frequência, ele fala coisas que vão na contramão do que pensam as demais lideranças do partido. As confusões se estendem para fora da legenda. No ano passado, quando ainda era deputado federal, protagonizou duas brigas com colegas: esbofeteou Messias Donato (Republicanos-ES) e insultou Nikolas Ferreira (PL-MG). Na contramão da lógica política, abandonou o mandato na Câmara para reassumir, em janeiro passado, a prefeitura de Maricá e o seu orçamento bilionário.

Um foguete desgovernado
O petista Quaquá tem atração pelo sincericídio. Ele sabe que Anielle Franco, irmã de Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em março de 2018, é ministra do governo Lula (Igualdade Racial). Mesmo assim, publicou em janeiro nas redes sociais uma foto em que aparece com a mulher e os filhos de Domingos Brazão — apontado pelas investigações, ao lado do irmão Chiquinho Brazão, como mandante do crime. E ainda acrescentou uma legenda à foto: “Não há sequer uma prova contra eles”.

Recebida no PT como bravata, a posição de Quaquá provocou críticas públicas da primeira-dama, Janja da Silva, da própria Anielle e da presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Mas, como outras tantas declarações polêmicas, ficou por isso mesmo. Quaquá segue inabalável no cargo de vice nacional do PT. A couraça do prefeito, dizem aliados próximos, estaria na crença de que seu jeito de ser reconecta o partido à sua base, por falar a língua do povo e operar sem a empáfia dos políticos profissionais.

A cidade de Maricá, no Rio de Janeiro Maricá, na região metropolitana do Rio de Janeiro, recebeu R$ 2,6 bilhões em royalties no ano passado

Em busca de outras razões, há quem prefira olhar para os números produzidos pela ANP (Agência Nacional do Petróleo). Com pouco mais de 360 quilômetros quadrados e uma população que não chega a 200 mil habitantes, Maricá liderou no ano passado o ranking das cidades fluminenses que mais receberam royalties do petróleo. O benefício engordou no período os cofres da prefeitura em R$ 2,692 bilhões. Em janeiro deste ano, entraram no caixa mais R$ 224,702 milhões. Os números não deixam dúvidas: Quaquá, que assumiu pela terceira vez a prefeitura da cidade, a 60 quilômetros do centro da capital fluminense, é o sheik da Região dos Lagos.

Orçamento farto e projetos em série
Os cofres cheios fazem do gabinete do prefeito uma usina de projetos. Após assumir, ele anunciou a criação de um novo campus para oferecer o que a prefeitura chama de “educação pública transformadora”, que atenderá alunos a partir dos 6 anos em tempo integral. Alguns projetos vão adiante. Outros, não. De todos, os mais conhecidos e longevos, lançados em sua primeira passagem pela prefeitura (2009-2016), são a tarifa zero nos ônibus – para utilizar o sistema, que mobiliza 115 ônibus em 38 linhas, basta a pessoa cadastrada fazer o sinal no ponto e embarcar – e a “mumbuca”, moeda social criada por Quaquá para o pagamento dos beneficiários do programa “Renda Melhor”.

Ônibus em Maricá que rodam sem cobrar passagem Além dos ônibus que rodam sem cobrar nada, município tem “moeda social”, a mumbuca: no enclave de Quaquá, dinheiro não é problema

A inspiração para o nome da moeda, amplamente aceita no comércio local, veio da infância pobre de Quaquá. Filho de um soldado da Polícia Militar e nascido no Caramujo, bairro da periferia de Niterói, ele aproveitava as visitas à casa da avó, em Maricá, para pescar acará no Rio Mumbuca, que corta o centro da cidade. Ao lado do pai e do irmão mais velho, usava as mãos para arrancar os peixes da toca. Outro alimento extraído do rio era a rã, que os meninos matavam a pauladas antes de comer.

Das mais fortes recordações da infância, Quaquá sempre cita as festas de Natal do 12º Batalhão da PM, onde o pai servia, em Niterói. Havia distribuição gratuita de brinquedos, proporcionada pelo então comandante da corporação, general Nilton Cerqueira, o mesmo que, dez anos antes, havia liderado a Operação Pajussara, responsável em 1971 pelo cerco e morte do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca no interior da Bahia.

Rei do camarote
Além do poder político, Quaquá se vende como um bem-sucedido empresário, com negócios no Brasil e em Portugal. No carnaval do ano passado, garantiu que faturou R$ 4 milhões com a venda de ingressos de seu camarote na Sapucaí – o “Favela” é hoje administrado pela mulher do prefeito, Gabriela Lopes. Entre pessoas que trabalham no ramo, o número é visto como um milagre, considerando a forte retração do comércio de camarotes nos últimos carnavais.

Os projetos de Quaquá para Maricá atravessam oceanos. Na terceira semana de janeiro, quando ainda esquentava a cadeira de prefeito, ele viajou para Madri e Lisboa, a pretexto de divulgar o seu emirado. Como já fez em ocasiões anteriores, estava acompanhado do músico Moacyr Luz e do empresário João Paulo Campos, dono do tradicional restaurante carioca Adonis. Também integrou a entourage o ator José de Abreu. Uma das apresentações sobre as oportunidades em Maricá ocupou os salões da embaixada brasileira na capital da Espanha, ao som de voz e violão de Luz e da culinária do Adonis.

Washington Quaquá posa do lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva Washington Quaquá posa do lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília

A “globalização” de Maricá já apareceu em outras investidas de Quaquá. No ano passado, ele levou à Sapucaí um grupo de executivos do que seria o “terceiro maior banco da Rússia”. Estariam interessados em investir na Mumbuca, a moeda local. Também recebeu no camarote o embaixador de Cuba, Adolfo Curbelo Castellanos. O prefeito, dono de uma agência de turismo chamada “Mais do que viagens”, disse que negociava com dirigentes cubanos o lançamento da campanha “Vai para Cuba”, com um apelo público centrado fortemente na história política da ilha caribenha que renderia lucros de R$ 50 milhões aos investidores.

Todas são apostas altas, caras, mas não se sabe exatamente que fim levaram. Quem circula pelas ruas de Maricá não encontra placas, outdoors ou qualquer referência a investimentos estrangeiros vigentes da cidade. A população local, ao que parece, ainda espera o desembarque de portugueses, espanhóis, russos, cubanos e outros gringos que toparam se associar a Quaquá.

A salada ideológica
As preferências ideológicas do prefeito são outro mistério. O mesmo político que se diz grato ao general Cerqueira pelos presentes na infância pobre se diz fã de Vladimir Palmeira, o líder estudantil que enfrentou o regime militar. No PT desde os 14 anos, Quaquá fazia parte da corrente radical Refazendo, de Vladimir, adversária interna do grupo de Lula. Outra fonte de inspiração é o deputado estadual paulista Eduardo Suplicy (PT), com seus programas de renda básica, referência para os programas sociais de Maricá.

Nessa salada de frutas ideológica, cabem ainda o governador Cláudio Castro (PL), que firmou com Quaquá uma parceria no campo da segurança pública, e o prefeito Eduardo Paes (PSD), que nomeou Diego Zeidan, de 26 anos, filho do sheik de Maricá, como titular da Secretaria de Habitação do Rio. O presidente da Assembleia Legislativa, Rodrigo Bacellar (PL), outra liderança importante no estado, recebeu apoio de Quaquá para a sua reeleição, no início de fevereiro.

As preferências políticas do prefeito jamais podem ser confundidas com as do PT. No ano passado, por exemplo, ele deu sinais claros de que não apoiava a candidatura de Guilherme Boulos, do PSOL, para a prefeitura de São Paulo.

O próximo passo é assumir as rédeas do PT no estado do Rio. Em julho, haverá eleição para o diretório estadual. Há rumores de que Quaquá vai lançar o nome de Fabiano Horta, ex-prefeito de Maricá, para presidente do partido. Assim, para além da influência já consolidada entre os municípios da Região dos Lagos, a força de Quaquá se consolida na capital e, curiosamente, dentro do próprio PT.

Com a nata do jogo
Fora da política, no carnaval Quaquá também semeia influência, cada vez mais. No vácuo deixado pelo ex-deputado federal Simão Sessim, morto em 2021, ele passou a operar como um porta-voz dos interesses da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) junto ao Congresso e ao governo federal. Sessim, primo do bicheiro Aniz Abraão David, o Anísio, cumpriu dez mandados consecutivos, sempre sintonizado com os interesses das escolas de samba e da contravenção.

Washington Quaquá e o ministro Alexandre Padilha com Gabriel David, presidente da Liesa Quaquá levou a Brasília Gabriel David (de gravata verde, ao lado do ministro Alexandre Padilha), presidente da liga das escolas de samba e filho do bicheiro Anísio Abraão David

Enquanto estava no Congresso, como presidente da Frente Parlamentar em Defesa do Samba e Valorização do Carnaval da Câmara, conseguiu agendar uma reunião do presidente da Liga, Gabriel David, filho de Anísio, com os ministros das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e do Turismo, Celso Sabino. O encontro ocorreu no Palácio do Planalto, em julho. A intenção era pedir apoio do governo federal para o fortalecimento do carnaval carioca. No encontro, David também apresentou uma proposta para a criação da Universidade do Carnaval.

Na ocasião, Quaquá e Gabriel solicitaram ao governo uma verba de R$ 50 milhões, o que corresponde a pouco mais de R$ 4 milhões por escola do Grupo Especial, a elite das escolas de samba. O recurso sairia das leis de incentivo ou na forma de patrocínio de empresas públicas, como a Caixa Econômica Federal e a Petrobras, que poderiam custear o carnaval em si ou projetos a ele associados. Outra opção seria recorrer aos programas de fomento à educação, turismo e economia solidária.

Logo depois, em agosto, no Salão do Turismo, organizado pelo Ministério do Turismo, Quaquá trabalhou para que Gabriel David subisse ao palco para entregar uma placa de agradecimento ao vice-presidente Geraldo Alckmin.

Rumo à elite?
Toda essa movimentação fortalece as apostas na União de Maricá como a mais forte candidata da Série Ouro a subir para o Grupo Especial. A prefeitura de Maricá investiu no desfile deste ano R$ 8 milhões, valor muito acima do orçamento das concorrentes. Para levar à avenida o enredo “O Cavalo de Santíssimo e a Coroa de Seu Sete”, a escola contratou o consagrado carnavalesco Leandro Vieira, que já fez duas agremiações (Império Serrano e Imperatriz Leopoldinense) ascenderem ao Grupo Especial.

O carnavalesco admite que os royalties, e as maravilhas que os recursos vão proporcionar na Sapucaí, pesaram em sua decisão de aceitar a escola. Para ele, a Maricá é uma “grande tela em branco”. Com a cautela de evitar comparações, Leandro Vieira lembra que Joãosinho Trinta, em 1975, teve o arrojo de deixar o Salgueiro e assumir a Beija-Flor, uma escola desconhecida à época. Ele viu poucas vezes Quaquá. A primeira delas, quando se conheceram, foi em um restaurante de Copacabana. Leandro ouviu do político o convite para assumir a escola de Maricá. Achou-o um tipo singular, que disparava vocábulos em todas as direções: “Ele não vê a cultura com os olhos da elite. Cultura, para ele, é a cerveja, o churrasquinho”.

Na figura de Quaquá, cabe um pouco de tudo: populismo, bravatas, gastanças, confusões, conspirações, poder, samba e futebol. Ninguém sabe o que ele planeja para o próprio futuro. Uma coisa, porém, é certa: o prefeito de Maricá é um político que incomoda.