PlatôBR: ‘Podem perder patente, mesmo sem condenação’, diz presidente do STM

Ministra Maria Elizabeth Rocha, que preside a mais alta corte militar do país, considera provável que os réus da trama golpista sejam expulsos das Forças Armadas

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Presidente do STM (Superior Tribunal Militar), ministra Maria Elizabeth Rocha Foto: José Cruz/Agência Brasil

A presidente do STM (Superior Tribunal Militar), ministra Maria Elizabeth Rocha, considera provável que os integrantes das Forças Armadas que respondem a ações penais no STF por tramarem um golpe percam suas patentes ao final das investigações, mesmo que não sejam condenados criminalmente.

Segundo a ministra, com base em julgamentos anteriores da Justiça Militar, a tendência é que os réus sejam expulsos das Forças Armadas. A ação seria aberta no STM após a conclusão dos processos no STF. Respondem pela trama golpista 22 militares e nove civis.

Empossada no cargo em março, a ministra elogiou o general Marco Antônio Freire Gomes, ex-comandante do Exército, que advertiu Jair Bolsonaro sobre as consequências jurídicas que ele poderia sofrer por tramar um golpe. “Ele bateu continência para a Constituição”, disse Maria Elizabeth.

Única mulher no plenário do STM, a ministra aproveitou para lamentar que o presidente Lula tenha escolhido um homem para compor o STJ (Superior Tribunal de Justiça): “É lamentável o que o presidente Lula tem feito com as mulheres, principalmente com a magistratura feminina”. Eis a entrevista:

Por que o STM não abriu processos contra militares suspeitos de participar da tentativa de golpe?
Da Justiça Militar ao juizinho lá do interior do norte do país, o Judiciário só age por provocação. Só o Ministério Público pode propor ação penal no STM. Nunca houve a propositura de nenhuma ação penal aqui decorrente do 8 de Janeiro, independente do ministro Alexandre de Moraes ser o juiz prevento para a causa. Se essa ação fosse proposta, nós teríamos de declinar o foro para o STF.

Por que o Ministério Público Militar não agiu?
Tem que perguntar para eles. Nós agimos com toda a correção aqui no 8 de Janeiro.

O STF abriu ações penais contra 22 réus militares e nove réus civis. Isso denota que, mesmo sem o aval de todos os comandantes das Forças Armadas, há indícios de que os militares participaram da trama golpista. Como a senhora avalia isso?
Quem dá golpe é o Alto Comando. Não é general da reserva nem oficial com patente abaixo de general de quatro estrelas. O generalato de três estrelas, de duas estrelas, os de brigada, esses não têm nem voz, eles não participam do Alto Comando. E o Alto Comando inteiro foi contrário. Aliás, o Alto Comando era comandado à época pelo general Freire Gomes (então comandante do Exército).

Mas o então comandante da Marinha, Almir Garnier, teria colocado as tropas à disposição de Bolsonaro para que o golpe fosse consumado.
Sim, mas o almirantado não sabia. Eu tive a oportunidade de conversar com alguns colegas da Marinha, que me afirmaram categoricamente que aquilo era uma decisão isolada do almirante Garnier. E que o almirantado, o Alto Comando da Marinha, não tinha conhecimento de nenhuma tentativa de golpe. Tanto que o general Freire Gomes virou para ele e disse: “Não jogue isso no meu colo, porque quem tem tropa sou eu”. E vou lhe dizer: precisa coragem para chegar para o comandante em chefe das Forças Armadas (na época, o então presidente Jair Bolsonaro), que ainda está no cargo, e dizer a ele: “Se o senhor tentar dar o golpe e não aceitar uma eleição que foi legitimada pelas urnas, eu vou ser obrigado a lhe prender”.

No depoimento prestado ao STF, o general Freire Gomes deu um passo atrás e foi menos incisivo. Disse apenas que alertou Bolsonaro para as consequências jurídicas que ele sofreria por tentar da um golpe.
Ele não deu um passo atrás. Por conviver tanto com os militares, e por ter um marido que é general (Romeu Bastos, hoje na reserva), a minha percepção é que a delação fere o espírito de corpo, que é tão importante dentro das Forças Armadas. Fere a ideia da coesão social que prevalece dentro das Forças Armadas.

O tenente-brigadeiro Baptista Junior, que comandava a Aeronáutica, disse ao tribunal que o colega do Exército ameaçou, sim, Bolsonaro com voz de prisão. Essas aparentes contradições enfraquecem os depoimentos dos comandantes?
Não enfraquecem. Estão muito visíveis e muito patentes os indícios que agora estão sendo obtidos como valor de prova durante a instrução penal. Ele não teria como dar voz de prisão, porque não houve consumação do delito. E não houve o golpe. Se tivesse havido, nós não estaríamos aqui conversando. Eu, provavelmente, nem estaria aqui neste tribunal. Não tenha dúvida, eu seria a primeira a ser cassada. Agora, por que ele disse algo e depois desdisse, isso eu não sei dizer, tem que perguntar a ele.

A senhora não considera relevante essa aparente contradição dele?
Eu aplaudo o general Freire Gomes, porque o que realmente importa foi a atitude que ele tomou num momento crucial da história do país. E eu tenho certeza e plena convicção que é por isso que ele vai ser lembrado pela história, por ter aderido ao lado certo da história. Foi corajoso, foi destemido e acabou tendo a cabeça cortada por ter agido da forma correta. Ele respeitou a Constituição, ele bateu continência para a Constituição e para o Estado Democrático e acabou sendo degolado por isso. A história vai se recordar dele por isso, e não pelo que ele falou ou deixou de falar no Supremo Tribunal Federal.

Por que a senhora acha que ele baixou o tom no STF?
Eu só posso interpretar dentro dessa dessa ideia de que o militar não gosta de delatar. Porque uma coisa é você falar para a polícia judiciária, outra é falar em juízo. Os depoimentos que são colhidos na fase inquisitorial não têm força probante. Só dentro da instrução criminal é que passarão a ter. Talvez ele não tenha se sentido confortável em expor um colega. Os militares têm essa questão da coesão. Eles são defendidos pelo escudo do outro dentro de uma guerra. Isso é a minha percepção, que o X-9 (expressão popular usada para definir delatores) é uma pessoa malvista dentro das Forças Armadas.

Se militares forem condenados, como o STM vai tratá-los?
Eles podem perder a patente mesmo que não houver condenação. Quando a pena é superior a dois anos, cabe uma representação por indignidade ou incompatibilidade com o oficialato. No caso, indignidade porque um réu condenado é indigno de vestir a farda. Aí o Ministério Público Militar precisa oferecer a ação. Quando a pena é abaixo de dois anos, cabe um Conselho de Justificação, que é instaurado no comando ao qual o militar pertence. Aí o comandante pode ou não mandar o processo para o STM. Agora, pode haver também representação por incompatibilidade, que seria uma iniciativa do Ministério Público Militar.

Como esses casos costumam ser tratados no STM?
Eu já julguei um caso de um oficial incompatível com o oficialato. Ele não era nenhum criminoso, mas ele chegava tarde, era punido, estava sempre malfardado, uma pessoa que não se adequou à vida militar. Entendeu-se que ele não era indigno, ele era simplesmente incompatível. E não havia crime nenhum. Normalmente, essas essas representações e conselhos só são oferecidos depois que a sentença penal transita em julgado (quando não cabem mais recursos à condenação).

Se um militar foi expulso das Forças Armadas, mesmo sem ter cometido crime, o mais provável é que esses 22 réus do STF também sejam expulsos, mesmo sem condenação no STF?
Eu acredito que sim, pelo fato de ter havido recentemente uma condenação unânime de um oficial que fazia política nas mídias digitais. O general Tomás Paiva (atual comandante do Exército) já havia dito que estava proibido e deu uma ordem com a tropa formada. O oficial simplesmente ignorou e continuou. O Ministério Público ofereceu a denúncia e a punição foi decidida por unanimidade. Também puniu por unanimidade um coronel que ofendeu, na época do 8 de Janeiro, nas mídias sociais, o comandante do Exército.

O que acontece após a expulsão das Forças Armadas?
Aí é um “morto ficto”. Se ele tiver família, o soldo passa para a família. Se não tiver família, ele perde tudo. O que também é um problema jurídico. Afinal, ele contribuiu a vida inteira para a previdência. A sanção de perder a patente eu até acho muito justa. Agora, perder o soldo, eu tenho minhas dúvidas. Mas nunca foi questionado isso. Isso é competência exclusiva do STM. Nisso, o Supremo não vai poder se pronunciar, é uma punição administrativa, como um servidor que é condenado por improbidade e perde o cargo.

Qual a opinião da senhora sobre a decisão do presidente Lula de escolher um homem para a vaga que foi aberta no STJ pela aposentadoria de uma ministra?
A despeito do desembargador Carlos Brandão ser um amigo querido, que eu respeito, aplaudo e cumprimento pela indicação, é lamentável o que o presidente Lula tem feito com as mulheres, principalmente com a magistratura feminina. Foi uma promessa de campanha que ele implementaria paridades, só que não é o que estamos vendo. Nós estamos vendo a recomposição da homogeneidade masculina. Porque as nossas vagas, que já eram poucas, estão cada vez menores.

A senhora está em campanha para incluir uma cadeira da Justiça Militar no CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Por quê?
Eu só consigo ver isso na minha frente. O meu propósito de gestão aqui é, antes de mais nada, conseguir essa vaga no CNJ. Quando o conselho foi criado, esqueceram de dar assento à Justiça Militar.

A senhora acha que isso foi deliberado, ou só um esquecimento?
Eu acho que esqueceram de nós. Na verdade, o tribunal é excluído até das festas que o ministro Luís Roberto Barroso dá aqui na Esplanada. Nós até fomos convidados. No dia.

Por que a senhora acha que a Justiça Militar é excluída?
As pessoas esquecem. Eu atribuo a dois fatores. Primeiro: um esquecimento sintomático da Justiça Militar da União. E outro também: essa invisibilidade é muito decorrente talvez do hermetismo dessa Justiça. Ainda é uma Justiça que, apesar de ser a mais antiga do Brasil, não se mostra, não se revela, não diz quem ela é, não diz da sua importância.

A senhora se reuniu na quarta-feira, 28, com ministros do governo e líderes do Congresso para tratar da inclusão da Justiça Militar no CNJ. Como foi a conversa?
Falei sobre o CNJ, mas quis deixar bem claro que eu estou querendo construir pontes com o governo, que é o meu governo. Em princípio, não posso nem ter ideologia política, mas é o meu governo, porque eu fui advogada da Casa Civil da Presidência da República no primeiro mandato do presidente Lula. Depois eu trabalhei na liderança do PT na Câmara dos Deputados. Trabalhei com dois deputados do PT: João Paulo Cunha e Virgílio Guimarães. Então, eu sempre tive uma ligação muito intensa. O meu marido, que, apesar de ser militar e já estar na reserva, foi secretário de Administração da Casa Civil no primeiro mandato do presidente Lula. Depois, ele foi para o governo Dilma Rousseff. Esse governo é o meu governo, foi o governo que eu elegi, isso não nego, todos sabem. O que eu quis dizer a eles (parlamentares e ministros) é que este tribunal defende o Estado Democrático de Direito.

A senhora chegou a conversar com o ministro Barroso sobre a inclusão da Justiça Militar no CNJ?
Não, porque já estava acertado entre ele, o Davi Alcolumbre e o Arthur Lira, que era presidente da Câmara, que a Justiça Militar teria uma vaga no CNJ. A relatoria foi para o senador Hamilton Mourão, que acrescentou outras duas vagas para a Justiça Militar. Aí ficou mais difícil de aprovar.