PlatôBR: ‘Comunicação não é o grande problema do governo’, diz Tarso Genro

Ministro nos dois primeiros governos de Lula, o petista Tarso Genro diz que falta ao governo definir quais projetos são estratégicos e ouvir mais a sociedade

Marcos Oliveira/Agência Senado
Tarso Genro Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Ministro nos dois primeiros governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro é um personagem forte na história do PT. Não só pelos cargos que ocupou, mas também por sua visão crítica sobre as ações do partido e de suas passagens pelo poder. Ele não hesita, por exemplo, em criticar a organização da celebração dos dois anos da vitória contra a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, como fez em um grupo fechado no próprio dia do ato, considerado por ele “amador”. Para Genro, o governo perdeu a oportunidade de fazer um evento grande em defesa da democracia.

Nesta entrevista ao PlatôBR, o ex-ministro aponta o episódio como mais um exemplo das falhas de comunicação do governo – o que, para ele, não pode ser confundido com a falta de um porta-voz, por exemplo. Mas não é só. Para Tarso Genro, o problema vai além da comunicação. Ele diz que, neste terceiro mandato de Lula, falta apresentar quais são os programas prioritários e discuti-los com a sociedade, que, segundo ele, está mais exigente que aquela dos mandatos anteriores.

Hoje, diz, a população está mais preocupada com questões de mobilidade e segurança pública do que com três refeições, acesso ao ensino fundamental e programas de proteção e esse é um desafio para a esquerda. O outro é o enfrentamento com a extrema direita, que se organiza internacionalmente e afronta os princípios democráticos. Como o PlatôBR mostrou ontem, Tarso Genro é um dos signatários de uma carta em que ex-ministros propõem uma frente ampla de partidos em torno de princípios republicanos para reger as estratégias e alianças para as eleições gerais de 2026. Eis a entrevista.

No que o governo falhou na organização da comemoração de 8 de janeiro?
Eu acho que o Brasil esteve à beira do abismo em 8 de janeiro de 2023. E essa situação gerou uma consciência política em vários setores da estrutura estatal e gerou também no próprio país, na própria sociedade civil e, inclusive, na grande imprensa, que teve uma grande importância naquele momento. Foi um momento de desafio para a manutenção da democracia no Brasil. E não foi uma coisa simples. Acho que, como era um governo novo e estava despreparado para enfrentar aquela situação, foi a sociedade civil quem derrotou o golpe. Foi o conjunto de redes de relacionamento político, cultural, social, que está bastante desenvolvido no país. Passa um determinado período e o governo resolve festejar aquele momento. É boa aquela manifestação cívica, extremamente importante e marcante, mas foi absolutamente insuficiente para ajudar a entranhar a importância épica daquele momento na sociedade brasileira, nos militares, nos parlamentares, nas instituições do Estado e nas religiões profundamente envolvidas na política. Acho que foi insuficiente porque era um momento de mudança em curso. A comunicação do governo já não ia bem, então certamente aquilo ali foi projetado de uma maneira um pouco amadora, dada a importância que teria aquela festa cívica.

O senhor considera que faltou mobilização popular?
Não acho que é um momento que tem de passar necessariamente por mobilização de massas na sociedade. Trata-se de um ato de Estado, que tem de ter determinados protocolos, que foram parcamente acionados. E os atos não tiveram a força teatral do ponto de vista histórico, uma força cênica do ponto de vista moral e uma força política do ponto de vista institucional suficiente. Eu acho que o Estado brasileiro perdeu uma grande oportunidade de dar um passo mais forte no sentido de congraçar a sociedade brasileira em torno de um projeto democrático, moderno e abrangente e que rejeite a radicalização da extrema direita que hoje ocorre em todo o mundo de maneira muito articulada. Pode-se dizer que o que existe hoje não é uma Internacional Socialista, ou comunista, mas uma “Internacional de Extrema Direita”.

E como funciona essa “Internacional de Extrema Direita”?
Eles interferem nos estados nacionais, atuam para questionar o Estado, a sua raiz, de modo a controlar a sua soberania e a criar dependências, inclusive com determinadas políticas extremistas que estão presentes em todo o universo político no mundo. Hoje está provado que isso tem um centro político articulado mundialmente, centrado hoje particularmente no governo americano, comandado agora por Donald Trump (a posse está marcada para o próximo dia 20), perpetrado por grandes empresários, que controlam esse lado. Mas isso não é um depoimento contra as redes. Isso é um depoimento que quer destacar a importância que têm as redes, e que (considera que) elas têm que ser também dominadas politicamente, dentro dos padrões éticos e legais de que é possível determinar para fazer uma luta justa contra esses preconceitos, essas inverdades que são espalhadas pelas redes em escala mundial.

E qual deve ser a resposta do poder público a essa força da extrema direita nas redes?
Eu acho que, primeiro, passa pela ordem jurídica interna de cada país soberano que deve regular, sem ofender ou bloquear o direito de opinião política. E essa regulação tem uma visão normativa muito clara hoje, nas constituições das democracias modernas, que é quem divulga um crime no sentido de promover esse crime e de encrustar na sociedade um sentimento animal da criminalidade tem que ser retirado desse espaço. E é isso que ocorre hoje. Não se trata de combater a opinião política. Não se trata de sufocar o debate, se trata de coibir crimes. Eu sempre dou um exemplo muito concreto disso. Algo que pode, a partir do singular, a partir do cotidiano das pessoas. Eu estou em um cinema e sei que ele não está pegando fogo. Mas eu levanto e digo que este cinema está incendiando e vai todo mundo morrer aqui. Nesse caso, eu manifesto uma opinião criminosa, porque eu sei que isso é mentira e leva as pessoas a colocarem suas vidas em risco. Não existe exemplo mais simples e concreto dessa regulação. Ninguém pode estimular o crime impunemente.

Ao falar de 8 de janeiro, o senhor apontou uma falha da comunicação. Como vê esse problema?
Eu acho que o governo teve neste primeiro momento na Secretaria de Comunicação mais um comunicador do governo do que um programa de comunicação do governo. Um programa de comunicação institucional verdadeiro, de interesse público, não ressalta o comunicador, ele ressalta um projeto de comunicação pública que deve ser oferecido à sociedade. Eu acho que isso ocorreu porque houve no início do governo uma confusão entre Secretaria de Comunicação e a voz autorizada do presidente da República, o porta-voz que não existe mais. Essa confusão na elaboração de um conceito de comunicação prejudicou o governo em um primeiro momento. Não quero dizer que o Paulo Pimenta (o agora ex-ministro da Secom, também petista, é conterrâneo de Tarso Genro) não seja uma pessoa correta ou não tenha se esforçado. Mas não se tem um projeto de comunicação. Ter uma comunicação de interesse público é muito diferente de se ter um porta-voz. E isso prejudicou um pouco o governo dos primeiros dois anos. Pode ser sanada agora, mas o governo terá de apresentar, fazer publicamente uma discussão sobre qual é o seu projeto, para que ele seja compreendido em toda a sua extensão pela sociedade civil.

Mas o senhor considera que o problema do atual governo é de comunicação?
A comunicação não é hoje o grande problema do governo. Falta escolher projetos estratégicos para estabelecer uma comunicação eficiente. De que não adianta dizer que tem um projeto de comunicação e não ter uma escolha de quais são os projetos estratégicos para esses dois anos de governo que restam? É o período em que vai se formar na sociedade a opinião sobre o governo. E é isso que tem que ser feito em lugar para depois apresentar o projeto de comunicação. O problema não está na comunicação, mas no conjunto de escolhas políticas, que o governo tem que fazer.

Qual a diferença entre o Lula 3 e os dois governos anteriores dele?
Acho que o Lula 3 não é uma figura humana e nem política diferente da figura admirável que foi o Lula 1 e o Lula 2. Acho que os tempos são outros e todos nós que temos algum nível de influência política, liderança política no país, no Estado e nas cidades, nós temos que nos adaptar aos novos tempos. E isso é um processo doloroso, difícil, porque todos nós fomos formados a partir de 1988 sem a existência de uma extrema direita fascista e violenta que está assentada hoje no país e em todo o mundo. E esse processo de adaptação tem que ser integrado também com a política de comunicação de Estado do Brasil.

Mas mudaram as demandas da sociedade também, não?
E eu acho que os tempos não são mais de ter um governo que somente trate das três refeições por dia e do direito à escola fundamental. Eu acho que esses tempos estão sendo cumpridos e foram bem cumpridos. Agora as questões são outras. Elas versam principalmente sobre o modo de vida, a comodidade das pessoas das grandes regiões metropolitanas, o transporte público e a segurança pública. Essa é a questão que hoje deve ser tomada em conta por governos progressistas e de esquerda. Se esses governos, com os quais me identifico, não tomarem conta disso, eles vão perder o espaço que a social-democracia esquerda e progressista conquistou na história. Então, a questão não é mais três refeições, escola de nível fundamental e proteção social. As questões hoje são mais complexas e mais urgentes do que essas. Até porque se formou uma sociedade civil muito ativa. Acho que todos os problemas a serem resolvidos são mais duros, mais graves.

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