“O mundo é tão desigual (…) de um lado esse carnaval, do outro a fome total”, canta Gilberto Gil em “A Novidade”, composta em 1986 em parceria com Herbert Vianna e Bi Ribeiro. A canção era sobre as desigualdades no mundo. Ao menos no Brasil, Gil acredita, as coisas melhoraram de lá para cá.
O cantor, compositor, poeta e imortal da Academia Brasileira de Letras recebeu o PlatôBR em seu estúdio, na Gávea, no Rio de Janeiro, para uma entrevista exclusiva.
No mês passado, Gil iniciou em Salvador a turnê “Tempo Rei”, que marcará sua despedida dos grandes palcos. Aos 82 anos (83 em junho), esbanjando energia, por duas horas e meia ele interpreta 29 sucessos, acompanhado o tempo todo pelo público. O show passou pelo Rio, segue para São Paulo (11, 12, 25 e 26 de abril), volta ao Rio e, depois, chega a Brasília.
Na entrevista, Gil falou de política, do momento no país, de Lula, Donald Trump, Lei Rouanet e de “Ainda estou Aqui”. Também lembrou de sua atuação política, primeiro como secretário de Cultura de Salvador com o então prefeito Mário Kertész (1987-1988), depois como vereador pelo PMDB na capital baiana (1989-1992) e, por fim, como ministro da Cultura nos dois primeiros mandatos do governo Lula (2003 a 2008).
Ele se diz bastante “esperançoso” com o futuro do Brasil. “Historicamente, nós estamos melhores no sentido geral das relações entre economia e a sociedade. No entanto, o governo é mal avaliado”, afirma. A explicação para isso? Ele entende que a população tem dificuldade de detectar pontos positivos no governo em razão de “uma esquizofrenia típica da modernidade”.
Gil, que gravou duas canções (“Parabolicamará”, em 1991, e “Pela internet”, em 1996) saudando a chegada da grande rede de computadores e das novas tecnologias, diz que esses comportamentos paradoxais foram levados “a potências extraordinárias” com as redes sociais e a uma “pulverização extraordinária da ideia de poder”. “Os governos são responsabilizados quando não são responsáveis únicos por tudo”, emenda.
Ex-filiado ao Partido Verde, Gilberto Gil foi ministro de Lula, mas seu nome já havia sido lembrado para o cargo no governo de José Sarney (PMDB), em 1987. Em 1994, ele apoiou Fernando Henrique Cardoso para a presidência e, no mandado seguinte do tucano, foi cotado de novo para ocupar um ministério, só que desta vez o de Meio Ambiente. Sobre as passagens por esses cargos públicos, ele diz que não conseguiu fazer “nem um décimo” do que pretendia, especialmente pela falta de recursos.
Eis os principais trechos da entrevista (assista à íntegra em vídeo aqui).
Como está sendo recebida a turnê “Tempo Rei” e essa sua despedida dos grandes palcos?
Está começando a turnê. A preparação já vem de algum tempo, uns seis meses, a concepção toda, a arregimentação de pessoal nos vários campos cobertos pelo show, os músicos e técnicos, a logística. Tivemos a estreia em Salvador, no dia 15 de março, uma abertura interessante no estádio da Fonte Nova, o que é uma coisa sempre arriscada por causa do clima. Tivemos sorte de ter um dia bonito e ensolarado em Salvador, e uma noite de lua cheia, inclusive. Foi um relaxamento muito grande para mim encontrar uma situação meteorológica bem favorável. E o público veio: 50 mil pessoas. Apesar do cansaço já bastante acentuado naquele momento, fizemos uma apresentação interessante, foi muito bem recebida. (…) Serão 20 e poucos shows aqui no Brasil. A expectativa também é de que haja alguma coisa programada na Europa e aqui na América do Sul. Estamos vendo a possibilidade de ir à Argentina, ao Chile, à Colômbia, pelo menos. No ano passado, estivemos na Austrália, Japão, China, Coreia e Singapura, mas com um show mais reduzido. É gratificante porque a resposta é muito boa, o público gosta. Ainda que seja extenuante, porque há a exigência de um desempenho físico. A repercussão é muito boa com as críticas, com as manifestações do próprio público. Com essa coisa da internet hoje em dia, a repercussão fica muito ampliada. Dá um contentamento muito grande para mim que as coisas estejam andando bem.
E a decisão de parar com os shows nos grandes palcos?
Eu vou fazer 83 anos agora, em junho. É uma idade razoavelmente apta ainda para os tempos atuais, uma idade em que ainda se pode fazer muita coisa, mas onde já o cansaço, o sinal do tempo, a acumulação das décadas de trabalho, já se faz presente. Então, fiquei pensando em diminuir drasticamente as atividades, estabelecer uma espécie de aposentadoria, que todos merecem depois de muitos anos de trabalho. Vem daí a decisão de reduzir drasticamente a atividade com viagens, apresentações, entrevistas e tudo isso, e deixar residualmente a atividade musical, doméstica, caseira e mesmo com o público, para um grau de acomodação às condições da idade. Basicamente, tecnicamente, não vou deixar de cantar nem de me apresentar, mas nesse modelo de excursões exaustivas, isso não.
Como está o Brasil hoje, em sua avaliação?
Vejo um país onde, em vários aspectos, se reafirma uma vocação nacional, para um país de língua única, território imenso, variedade de formação racial, várias raças formando o país. Uma história razoavelmente benigna do ponto de vista da configuração pacífica do povo. Um país sem muita beligerância, sem muita hostilidade com relação aos seus vizinhos, um país suficientemente bem encaixado nesse encaixe da América do Sul, da América Latina. Esse retrospecto histórico, nesses vários aspectos, confere ao Brasil uma situação razoavelmente interessante como país. Temos, nos últimos cem anos, vivido primeiro uma monarquia constitucionalista, depois uma República importante, uma consolidação política dos vários campos de manifestação política, ainda uma certa hegemonia das elites, mas também com uma cessão razoável de espaço para as hostes populares. Para os setores populares que ascenderam nos últimos anos, que chegaram ao poder, especialmente depois da fundação do Partido dos Trabalhadores, que reviu um pouco o republicanismo no país. A situação do Brasil é uma situação bastante razoável, então, se considerarmos o porte, a força natural, a condição geográfica. Com tudo isso, acho que eu sou esperançoso. Continuo esperançoso em relação ao Brasil e ao seu futuro.
Uma experiência como a ocorrida recentemente com o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro não ameaçou um pouco essa característica pacífica do brasileiro?
Acho que não, porque ela se insere num contexto que é mundial. Há uma ascensão razoavelmente considerável, forte, daquilo que se convencionou chamar de direita, em comparação àquilo que se convencionou também chamar de esquerda. Eu falei há pouco do Partido dos Trabalhadores, uma agremiação política colocada nesse campo, considerada pertencente a esse campo das esquerdas. A chegada de uma liderança política de direita, com força popular, com adesão de vários setores amplos da vida nacional, da vida política do país, foi uma coisa natural. Especialmente se você considera essa ascensão dos chamados líderes populistas de direita no mundo inteiro. Tem o Viktor Orbán (líder da extrema direita da Hungria, que atua como primeiro-ministro do país desde 2010), o presidente da Turquia, (Recep) Erdogan. Tem lideranças políticas de direita também na Holanda, na Áustria. Agora, até na Alemanha (tem) esse fenômeno do crescimento. Então, esse fenômeno contemporâneo ocorreu com o governo Bolsonaro, com sua representatividade. É uma normalidade. O que fugiu um pouco da normalidade foram as pretensões golpistas comprovadas e claramente perceptíveis pela sociedade brasileira. Enfim, houve uma reação felizmente muito pronta de todo o sistema político brasileiro. Um trabalho muito importante de um dos poderes da República, o Poder Judiciário, tomando conta, dando conta de zelar pela Constituição, pelo Estado de Direito. Então, vejo que estamos transcorrendo dentro de uma certa normalidade nesses últimos tempos. Não vejo nada extraordinariamente ameaçador de fato.
Nem o Trump é ameaçador com essas medidas econômicas que ele está tomando, causando uma convulsão nos mercados no mundo?
Com ameaças mais diretamente ligadas ao seu próprio povo, ao povo americano. Os mais ameaçados ultimamente por essas medidas do Trump são os americanos, a população americana. (A população americana) viveu um bem-estar muito grande nos últimos 50, 60, 70 anos, pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos assumiram definitivamente uma dimensão mais imperial, migraram de um colonialismo experimental para um imperialismo de fato, com consequências complicadas para o mundo, tanto negativas quanto positivas para o resto do mundo. E que agora tem, nesse recuo do Trump, uma ameaça muito grande. Primeiro para os próprios americanos e, em segundo lugar, para o resto do mundo, sendo que o resto do mundo tem as outras potências. A Europa, com toda a sua herança de colonialismos e imperialismos também anteriores. Tem a China, o Japão, a Coreia, a franja toda asiática, que é uma franja muito importante hoje em dia, e que, de alguma maneira, vai reagir a esse novo isolacionismo do Trump, a esse unilateralismo que, na verdade, nada mais é do que um ajustamento que os Estados Unidos estão fazendo. O trumpismo é um ajustamento, especialmente uma resposta à ascensão chinesa, que é uma ascensão muito forte do ponto de vista econômico, do ponto de vista tecnológico, mas que é ainda sustentado por um Estado forte, um Estado que vem de uma longa experiência comunista. Enfim, são essas reconfigurações do mundo que estão em pauta agora. E a resposta, no sentido do ajustamento necessário, é pronta, é imediata. Em um mês, em dois meses, entrando no terceiro mês. E as respostas internacionais, mundiais, a essas novas propostas do Trump vieram. É uma resposta imediata já. Já estamos vivendo em termos dessas novas respostas dadas por esses grandes players.
Você não tem receio dos efeitos e das consequências disso para a população, para a cultura?
Mas é tudo o que sempre viveu a humanidade. Diferenças de classes, diferenças de ajustamento entre riqueza e pobreza, respostas à questão de liberdade e opressão. São respostas que a história da humanidade sempre teve que dar, em diferentes níveis de intensidade, e que agora chega a uma intensidade extraordinária, com oito bilhões de pessoas no mundo, caminhando para dez bilhões daqui a pouco.
Voltando um pouquinho para o Brasil… Como você avalia o governo Lula hoje?
Acho que o fato de tê-lo na chefia desse governo já é uma coisa interessante. É um homem com uma formação muito importante, conhecida de todos, com uma natureza humana também benigna. Não é à toa que ele candidato, se eleição houvesse agora e ele candidato fosse, a maioria do eleitorado brasileiro ainda preferiria votar nele em relação a tantos outros possíveis candidatos. Esse é o chefe do governo que nós temos hoje. O governo e a avaliação do governo hoje caminham dentro desse modo desajustado de manifestação da opinião pública. Você veja que isso está acontecendo em todos os lugares. Os governos em geral são muito mal avaliados em todos os lugares, porque permanece ainda um pouco nas populações, não só no Brasil, essa ideia de que a responsabilidade por tudo o que ocorre, para o bem, para o mal, é do governo. Essa praxe de colocar o governo como responsável por tudo, o que não é real, não é fato. E você tem esses paradoxos terríveis, tipo: a economia vai melhor, a distribuição de renda vai melhor. Historicamente, nós estamos melhores no sentido geral das relações entre economia, sociedade etc. E, no entanto, o governo é mal avaliado. É uma esquizofrenia típica da modernidade, eu diria da pós-modernidade. Os governos são responsabilizados quando não são responsáveis únicos. Então, essa esquizofrenia acaba permeando tudo e estabelecendo essas coisas paradoxais como um líder preferido, entre tantos outros, pelo público, e o seu governo mal avaliado, apesar de apresentar índices positivos.
Por que ocorre isso?
Essa esquizofrenia da sociedade pós-moderna foi levada a potências extraordinárias com a chegada da internet, das redes sociais, com essa pulverização extraordinária da ideia de poder. Não do poder em si, mas da ideia (de poder). Esse transbordamento da ideologização.
Como foram suas experiências como vereador, secretário de Cultura e ministro? O que mudou em relação a esses períodos e o momento atual?
Há uma dificuldade de fazer as coisas. E a grande dificuldade continua sendo o encaixe institucional, o encaixe das instituições, ministérios, secretarias de governo, todo esse campo da administração pública… A dificuldade de garantir recursos econômicos, financeiros, técnicos, humanos, para que as coisas sejam feitas. Para que essa ideia de política pública floresça, cresça e responda positivamente. A dificuldade continua muito grande. O orçamento, por exemplo, do Ministério da Cultura, é um orçamento ínfimo, quase insignificante, para cobrir todo um campo de atividades culturais. É onde a instituição cultural precisa se mostrar, precisa se apresentar, precisa se constituir fortemente e não tem recursos. E já não tinha desde o tempo de Celso Furtado (ministro do Planejamento nos anos 1960, antes do regime militar) e do tempo do Capanema (Gustavo Capanema, ministro da Educação de 1937 a 1945), de quando ainda éramos o Ministério da Educação e Cultura. Depois, com o Ministério da Cultura, a cultura se autonomizou, mas sempre com poucos recursos. É uma herança histórica da má distribuição dos recursos, a má distribuição da riqueza, a riqueza concentrada nas elites que priorizam os seus próprios interesses, que trabalham praticamente para si mesmos, dando alguma coisinha para ter a unidade nacional garantida.
Como você avalia a ação da ministra Margareth Menezes na Cultura?
Ela tenta fazer milagre o tempo todo, com um orçamento que, no caso dela, tem sido um pouquinho maior do que era o meu, por exemplo, mas ainda é só um pouquinho maior. Margareth tem, como eu tive e tantos outros, o Juca Ferreira, a Ana Buarque de Holanda (ex-ministros da Cultura), dificuldades que praticamente ainda não foram superadas.
Você então não conseguiu fazer aquilo que esperava?
Nem um décimo.
Se alguém lhe chamar novamente para um novo cargo em governo, você iria?
Não. É o tal negócio: a idade chega. E estou fazendo uma turnê de despedida. Na gestão pública também já me despedi. Já não dá mais.
Como avalia a Lei Rouanet? O que ela teve de positivo e de falhas? Como é esse uso político por grupos políticos conservadores que a criticam?
Qual é a finalidade básica da lei de incentivo, seja ela qual for? O incentivo fiscal, no caso da cultura. Um pequeno incentivo fiscal dado aos detentores dos recursos, aos detentores do capital. No caso, às empresas brasileiras. Um incentivo fiscal para que elas invistam na cultura. Essa finalidade basicamente não foi atingida pelas leis de incentivo. Todas elas, as estaduais, municipais. Porque era aquela questão das elites defendendo os seus interesses. Na verdade, a Lei Rouanet foi feita para que o incentivo estimulasse o investimento cada vez maior na vida cultural. E eles, os empresários, cada vez se interessaram mais em defender a isenção, garantir mais isenção para as suas aplicações econômicas e financeiras e menos interesse em expandir o investimento normal, natural e direto no vasto campo de vida cultural que temos, música, teatro, cinema, esportes. Sobre o uso político, aí é o ti-ti-ti, o disse-me-disse da vida política. É o jogo natural de quem está de um lado e quem está do outro. Quem está de um lado ataca o outro, e quem está do outro faz o mesmo.
O que representou a vitória do filme “Ainda Estou Aqui” no Oscar?
Muito interessante, em primeiro lugar, do ponto de vista do cinema em si, a linguagem cinematográfica. Um belo filme, bem feito, muito bem dirigido, muito bem concebido, muito bem executado pelos atores, por todos os responsáveis, pelos técnicos. É um filme bem feito. Segundo, um filme sobre uma questão importante, que é a questão das liberdades civis, as liberdades republicanas, as liberdades públicas brasileiras. É um filme cujo tema é a denúncia de um período difícil, um período complicado da vida nacional, com uma ditadura intervencionista, agressiva, violenta. O exemplo tratado no filme sobre o ex-deputado Rubens Paiva é bem exemplo do grande malefício que foi aquele período ditatorial. E é uma denúncia da ameaça que, por acaso, possa ainda vir no futuro, com ainda uma parte do povo brasileiro, da população, favorável a uma ditadura, ainda que minoritária, mas uma parte significativa da população brasileira favorável a um regime de exceção. O filme previne a consciência, chama a atenção da consciência nacional para perigos desse tipo. O filme fez o seu papel de informar, de alertar.