O que muda na prática caso seja aprovado e sancionado o PL Antifacção

A IstoÉ entrevistou três especialistas para esclarecer as principais questões e controvérsias do projeto de lei

Reprodução / Foto: Kayo Magalhães / Câmara dos Deputados
Foto: Reprodução / Foto: Kayo Magalhães / Câmara dos Deputados

O Senado Federal analisa o PL Antifacção, com expectativa de deliberação no plenário já nesta quarta-feira, 3. O texto-base, aprovado na Câmara dos Deputados em 18 de novembro por 370 votos favoráveis contra 110 contrários, segue sob forte polarização, especialmente quanto à distribuição de recursos apreendidos em operações contra o crime organizado – ponto de impasse que o governo Lula tenta reverter. 

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Relator da proposta no Senado, o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) anunciou que apresentará um substitutivo com ajustes visando resolver divergências com a Polícia Federal e órgãos de investigação.

O texto da Câmara, relatado por Guilherme Derrite (PP-SP), alterou trechos da versão original enviada pelo governo federal com o objetivo de endurecer o combate a facções criminosas como o PCC e o Comando Vermelho. A tramitação gerou críticas veementes do Planalto e de lideranças petistas no Congresso, que acusam o texto de “enfraquecer o combate ao crime, gerar insegurança jurídica e asfixiar” os órgãos federais de persecução penal.

Recentemente, o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviou ao relator uma lista de falhas e inconsistências, defendendo o retorno à proposta original para preservar o marco legal contra o crime organizado.

“Não podemos permitir que operações sejam enfraquecidas por um relatório votado às pressas, sem ouvir especialistas e órgãos de forma adequada, em audiências públicas transparentes, para que todos saibam o que está em jogo”, declarou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em 19 de novembro.

O governo, por meio da ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, tem pressionado por negociações, apelando ao “bom senso” dos senadores para “evitar retrocessos”. O projeto introduz novos crimes, eleva penas e tenta criar mecanismos de investigação mais robustos, além de regras específicas para líderes de facções. Entre as principais mudanças previstas pelo texto aprovado na Câmara dos Deputados estão:

— Penas de 20 a 40 anos para facções ultraviolentas;
— Tipificação de novos crimes, como “novo cangaço”, domínio territorial, uso de explosivos, armas pesadas, drones e ataques a infraestruturas essenciais;
— Agravante para crimes ligados a garimpo ilegal;
— Regras mais rígidas para progressão de regime penal;
— Novos instrumentos de investigação, incluindo monitoramento audiovisual de parlatórios;
— Ampliação de buscas e apreensões, quebras de sigilo e operações encobertas;
— Bloqueio imediato de contas, bens e criptoativos;
— Alienação antecipada de bens na fase de investigação;
— Possibilidade de intervenção judicial em empresas usadas por organizações criminosas. 

Caso aprovado no Senado sem alterações, o PL segue para sanção presidencial. Alterações, porém, demandariam retorno à Câmara.

Para entender, de forma prática, como a aprovação e a sanção do projeto de lei podem impactar o dia a dia de quem vive em áreas dominadas pelo crime organizado, quais medidas seriam mais eficazes para combater a criminalidade e como funcionam as disputas de poder no controle da segurança pública, a IstoÉ convidou três especialistas: o analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Guaracy Mingardi, a diretora de pesquisa do Instituto Igarapé Melina Risso e o advogado e doutor em políticas públicas pela UFRGS Alberto Kopittke — para dissertarem e trazerem profundidade no processo de entendimento desses fatos.

IstoÉ Como esse racha entre o Executivo, o Legislativo e órgãos de segurança como a PF e as polícias estaduais afeta diretamente a coordenação de operações em territórios dominados por facções criminosas, como em comunidades no Rio e em São Paulo?

Alberto É muito importante a gente tentar manter a segurança pública longe dos embates políticos. Isso sempre prejudica a segurança pública. Tanto o uso dela politicamente, com operações de grande repercussão, mas sem estratégia e sem integração. Quanto numa discussão muito açodada. No Congresso, tinha um projeto estruturado e aí começa-se a tentar, com fins políticos, mexer nele. Isso sem um planejamento das consequências, visando só uma repercussão política. Então, o oposto disso é uma boa integração institucional, que a gente viu na Carbono Oculto, que reuniu o MP, Polícia Civil, Polícia Federal, independente da política. O crime só é organizado quando o poder público é desorganizado. É uma frase que eu uso. E a única forma de se combater crime organizado é com alta integração. Neste aspecto, acho que o projeto fortalecia a Receita, o COAF e a Polícia Federal.

Guaracy – Não tem, nem nunca teve coordenação. Eu só não vejo coordenação nem entre a Polícia Civil e a Polícia Militar. Elas disputam espaço. Então não tem coordenação. O projeto inicial do governo começou a ser discutido, mas a oposição não quis saber. 

IstoÉEssas divergências sobre o controle da segurança — como a repartição de bens apreendidos entre fundos estaduais e nacionais, com participação da PF — podem atrasar ou comprometer a implementação prática da lei?

Melina – O Fundo Nacional de Política de Drogas já implementou uma medida que está em vigor — independentemente das disputas atuais sobre o tema. Essa medida, proposta pela Senad, determina que os bens apreendidos em operações relacionadas ao tráfico de drogas sejam destinados diretamente às polícias que conduziram a investigação e a apreensão. O objetivo é incentivar que as investigações não se limitem apenas ao crime principal, mas avancem também sobre o patrimônio dos envolvidos. Afinal, o crime organizado tem como foco principal a lucratividade. Por isso, atacar a estrutura econômica das facções é absolutamente fundamental.Atualmente, estão sendo criados mecanismos para que parte desses recursos retorne às forças policiais, fortalecendo sua capacidade de continuar desmantelando essas organizações de forma mais efetiva.

Alberto – Esse foi um dos grandes equívocosdo relator: enfraquecer a Polícia Federal. Esse recurso é muito importante, especialmente para questões de operações e tecnologia, em que você tem sempre muitos gastos não previstos. E para a Polícia Federal e Receita Federal, essa pode ser a diferença entre conseguir dar o salto para o combate ao crime organizado ou não. O crime organizado é muito mais rápido para conseguir verbas, e essa verba é chave para a Polícia Federal e para a Receita. Os Estados já ganharam o Fundo Nacional de Segurança Pública. Pulverizar esse recurso para o Brasil inteiro acaba não provocando impacto algum, especialmente para o crime organizado.

Guaracy – Se houver problema jurídico, pode levar anos até conseguir usar o bem apreendido. Exemplo simples: um carro. Quando finalmente liberam, já está sucateado. Não é tão fácil assim. Hoje depende de quem apreendeu: se foi PF, vai pra União, e por aí vai. Mas tem propostas andando e, na minha opinião, vão resolver isso logo.

IstoÉ Para as pessoas que vivem em territórios sob domínio de facções, como o aumento de penas para homicídio doloso (de 6-20 para 20-40 anos) e roubo (de 4-10 para 12-30 anos) no PL pode melhorar ou piorar sua segurança cotidiana? Há risco de escalada de violência retaliatória ou de maior isolamento dessas comunidades?

Melina – Só vai existir efetividade e a concretização do aumento da pena se houver boas investigações policiais, apresentações de denúncia e julgamento dos casos. Se isso não acontecer, não há o que se falar em aumento de pena. Então, muitas vezes o debate legislativo é sobre o aumento da pena, mas a gente discute muito pouco sobre a qualidade da investigação. Sem a investigação, sem a origem, sem qualidade na prova da materialidade, na estruturação e demonstração da autoria, no esclarecimento dessas dinâmicas, o aumento de pena é absolutamente inócuo. 

Alberto   Apesar de entender a opinião pública, qual é o problema chave disso? Você vai fazer mais uma grande expansão do sistema prisional, do aprisionamento, novamente sem ter planejado o sistema prisional. E este é o ambiente em que as facções se fortalecem. Eu sou muito favorável à pena alta para a liderança, para peças-chave das organizações, porque elas detêm muito o poder, mas como já foi feito na lei de drogas, você separou ali traficante e usuário e o que a justiça fez? Enquadrou todo o microtráfico como traficante grande. É algo muito desigual.

Guaracy – No final de 1999 e início dos anos 2000, entrou em vigor a chamada Lei das Três Regiões, que aumentou significativamente a pena para homicídio qualificado, reduziu as possibilidades de progressão de regime e limitou benefícios como indulto e anistia. Isso causou diminuição no número de homicídios? Não. Então, eu não sei até quanto isso pode ajudar ou não. O que interessa para o moleque que trabalha no tráfico no Rio de Janeiro é ter um fuzil na mão, ele não vai pensar se vai ficar 20 ou 40 anos preso. Ele não vai pensar mais em ser pego. 

IstoÉNo contexto do combate ao crime organizado, quais os riscos e benefícios políticos de uma maior centralização da segurança pública (como maior poder investigativo federal) versus a manutenção de uma coordenação descentralizada entre estados e União? Como isso impacta a eficiência das forças de segurança, considerando as críticas da PF a potenciais cortes orçamentários no projeto?

Melina – Primeiro, as organizações criminosas têm se tornado cada vez mais sofisticadas, o que exige uma resposta igualmente estruturada do Estado. A centralização da informação — ou seja, a criação de grupos especializados com investigadores e promotores focados nesse tema, que coletam, compartilham e articulam dados de forma contínua — tende a gerar resultados muito positivos. Um exemplo clássico disso foi lá atrás, na Amazônia: o Ministério Público criou a Força-Tarefa Amazônia. O que ela fez? Concentrou casos semelhantes e permitiu que procuradores da República desenvolvessem especialização em crimes ambientais complexos. Essa concentração e expertise tornam a atuação muito mais efetiva.

Alberto – A autonomia dos Estados em segurança pública é um princípio fundamental, está prevista na Constituição e ninguém pretende mexer nisso. Durante a ditadura, houve uma centralização na estrutura militar, mas isso ficou no passado. O debate atual — e decisivo — é outro: como fazer, seguindo o modelo de países como Estados Unidos, França, Alemanha e Colômbia? Fortalecer a capacidade federal de convocar, coordenar e liderar operações estratégicas contra o crime organizado, sem ferir a autonomia estadual. Ou seja, manter os Estados no comando do dia a dia da segurança, mas dar às instituições federais mais musculatura e autoridade para atuar de forma integrada e eficaz no combate ao crime organizado em nível nacional.

Guaracy Não pode ser todo centralizado. O problema é que há uma dificuldade muito grande da Polícia Federal em trabalhar com policiais estaduais. Agora, a troca de informação normalmente é só do Estado para União. Porque a Polícia Federal, muitas vezes, não confia nas polícias estaduais. Então não vai repassar informação. O que você precisa não é aumentar ou diminuir a independência de cada parte. É preciso pensar o seguinte: se o objetivo é enfrentar o Comando Vermelho, por exemplo, cria-se uma força-tarefa específica para isso. A Polícia Federal entra com um número definido de agentes e delegados, a Polícia Civil entra com os seus, e assim por diante. Enquanto a operação estiver em andamento, cada instituição responde rigorosamente pelas informações que detém. Se alguém da Polícia Civil vazar algo, é a Polícia Civil que tem que ser responsabilizada e penalizada. A responsabilidade tem que ser clara e institucional, para que o sigilo e a coordenação funcionem de verdade.

IstoÉ O bloqueio de bens durante investigações, agora previsto no PL, favorece uma abordagem centralizada ou reforça a descentralização? Quais desafios operacionais isso traz para polícias estaduais em operações locais contra milícias ou paramilitares?

Melina – Vários países latino-americanos adotaram a figura da extinção de domínio, que é exatamente o que se tentou implementar aqui no Brasil. Trata-se de um mecanismo extremamente relevante no combate ao crime organizado. A grande vantagem da extinção de domínio, como ela funciona nesses países, é permitir a perda definitiva do bem por meio de uma ação civil, de forma muito mais rápida e independente de condenação penal. Isso possibilita atacar o patrimônio ilícito com agilidade, sem precisar esperar o trâmite longo do processo criminal, tornando-a uma ferramenta poderosa para desestruturar economicamente as organizações criminosas.

Alberto –  O projeto original do governo previa acelerar ainda mais, através de mecanismos administrativos, o perdimento de bens. Especialmente, por exemplo, a Receita, que fez a Operação Carbono. Pareceu uma resposta a essa operação. Se a Receita conseguiu apreender vários navios, e botar já para vender, você não tem como guardar. Navios, fazendas… é muito patrimônio. O Brasil já avançou bastante nesse tema, mas o projeto original do governo aceleraria ainda mais o processo de perdimento de bens. O substitutivo, por outro lado, transfere tudo para a Justiça por meio de uma ação que pode demorar anos (ninguém sabe exatamente quanto) até autorizar a venda dos bens.

Guaracy – O estado não pode bloquear os bens de alguém fora do país, não pode bloquear fora do estado, é o judiciário normalmente que bloqueia. Os juízes que precisam determinar se os bens vão ser bloqueados ou não. Não pode simplesmente a autoridade policial decidir e bloquear os bens. Quais desafios operacionais isso traz para polícias estaduais em operações locais contra milícias ou paramilitares? Não sei se isso traz nenhum problema. 

IstoÉ A tentativa de equiparar facções criminosas a grupos terroristas foi barrada na votação. Essa associação seria prejudicial para o combate ao crime organizado, ou poderia trazer ferramentas jurídicas úteis, como as da Lei Antiterrorismo?

Melina – A Lei Antiterrorismo deixa claro que a motivação tem que ser ideológica ou política. Já a Lei de Crime Organizado foca na motivação de lucro. Quando olho para esses grupos, o que os move não é ideologia, é claramente motivação financeira e busca por lucro próprio. Por isso, acho que não devemos mesclar essas duas leis, porque isso pode trazer consequências muito mais graves.

Alberto Esse debate é totalmente equivocado. Felizmente o governo e a oposição perceberam isso, tanto que o próprio presidente da casa não autorizou. Isso está inserido em uma discussão geopolítica. O Equador, por exemplo, acabou de recusar a entrada de bases americanas, e isso está gerando muito questionamento na Argentina. A gente precisa de cooperação internacional, dos EUA, no combate à lavagem de dinheiro, no combate ao tráfico de armas. 

Guaracy – Não tem sentido isso. Crime é uma coisa, terrorismo é outra. Por exemplo, o Brasil não reconhece o Hezbollah como organização terrorista. Porque eles não interferem no Brasil. Eles estão em uma disputa. O Hezbollah é uma disputa local com os soldados espanhóis. É um estado diferente, né? É uma disputa local. Não reconhecíamos como organização terrorista. Essa equiparação está na moda porque a “besta americana” [Donald Trump] coloca traficantes como terroristas. O que ele está fazendo, na verdade, é matança sem autorização.

*Estagiário sob supervisão