O escritor paulistano Mario de Andrade (1893-1945), entre suas valiosas produções literárias e pesquisas, antecedeu em quase um século o ‘boom’ do interesse pela gastronomia no País, marcando seu pioneirismo também nessa área. Seria um bom mote para o centenário daquela que seria lembrada no Brasil afora como Semana de Arte Moderna de 1922, a ser celebrada agora em fevereiro, envolvendo outros nomes pesos-pesados da nossa cultura, como Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Villa Lobos, Di Cavalcanti, para citar alguns.

Há registros acadêmicos desse lado menos conhecido de Mario, material variado, receitas manuscritas e datilografadas por ele, coleção de cardápios e crônicas (uma de 1939, no jornal “Estado de S. Paulo”, “Tacacá com Tucupi”). Viviane Aguiar, com mestrado em História Social na USP, prepara um livro sobre o tema. “Vai se chamar ‘Fome estomacal de Brasil: Mário de Andrade e a cozinha’, mas ainda estou finalizando a escrita”, afirma. Viviane é doutoranda em História Social pela USP e pesquisadora do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA), na mesma instituição. Vem estudando e dando cursos sobre a relação de Mário de Andrade com a cozinha brasileira há alguns anos.

O escritor, segundo ela, tinha um lado “gourmand“. Na capital paulista, saía da Barra Funda, onde morava, e ia beber chope em um bar chamado Franciscano, que existiu na Rua Líbero Badaró, “perto (…) da Avenida São João, com fundo envidraçado sobre o Vale do Anhangabaú”, escreveu Antonio Candido. “Sentava numa mesa redonda de canto, perto do balcão, e ia consumindo sucessivas ‘pedras’, que são canecas grandes de louça clara. Os amigos sabiam que podiam encontrá-lo no Franciscano e ele costumava marcar encontros lá, por vezes à tarde.”

Ou então ia ao bar do Hotel Terminus, na Brigadeiro Tobias esquina com a Rua Washington Luis; ao Restaurante Trianon, na Paulista. Frequentava os jantares do palacete de Olivia Guedes Penteado, que ficava na Avenida Duque de Caxias com Conselheiro Nébias; e da Vila Kyrial, residência de um senador da República e reduto cultural da época, na Vila Mariana.

Sua atração pela culinária brasileira “ultrapassava os cinco sentidos”, transformando-se em objeto de estudo. Ele tinha “fome física, fome estomacal de Brasil agora”, como teria escrito em uma carta ao amigo igualmente estudioso do folclore nacional Câmara Cascudo. Essa fome, como no título do livro de Viviane, se referia à vontade visceral de conhecer e “mastigar” o Brasil, com suas tradições e seus costumes, com as influências estrangeiras formando uma mistura “essencial” brasileira.

Mario fala dos pratos brasileiros em pelo menos duas obras: o clássico “Macunaíma” e o inacabado “O Banquete”, publicado postumamente. Segundo Viviane, “Macunaíma” tem mais de 130 referências a comidas transregionais brasileiras. Ela afirma que no período em que ele esteve à frente do departamento de cultura do governo do Estado de São Paulo, na década de 1930, Mario comandou uma pesquisa sobre tabus alimentares no Estado, que foi apresentada no Congresso Internacional de Folclore de Paris, em 1937.

“Mario tinha uma fome visceral de conhecer o Brasil, de buscar conhecer a nação por sua cultura culinária”, disse Viviane em um webinário do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), da USP, sobre o tema. Um bom mote para discutir o modernismo no Brasil de Mario de Andrade e seu legado 100 anos depois.