Nada é trivial na campanha presidencial americana deste ano, e o primeiro debate entre os candidatos, na última terça-feira, 29, não fugiu à regra. O evento, que teve pouca discussão de propostas e muita agressão, já é considerado um dos piores desde os anos 1960. E isso é culpa de Donald Trump. O presidente está atrás nas pesquisas, acuado pela crise. Para reverter a dinâmica da campanha, que se tornou um julgamento de suas ações, partiu para o ataque contra o democrata, ressaltando sua maior habilidade televisiva.

SIGA O DINHEIRO Lembrando o caso Watergate, eleitor protesta contra Trump, acusado de não pagar impostos (Crédito:JIM LO SCALZO)

Mas a estratégia de polarização e agressividade está em xeque. Além de distribuir insultos e tentar desestabilizar emocionalmente o oponente, Trump também se mostrou na defensiva. É inevitável que o mandatário preste contas de suas realizações na disputa pela reeleição, e ele está vulnerável. O coronavírus atingiu em cheio sua gestão. Ele deu prognósticos fantasiosos e equivocados para a pandemia, que já causou 200 mil mortos. A economia, sua principal vitrine, levou um tombo histórico. Por fim, no último domingo, sua fama de bilionário também sofreu um golpe. O jornal The New York Times mostrou que ele pagou apenas US$ 750 de imposto em 2016, quando se elegeu, assim como no primeiro ano de mandato. É um número devastador para o americano comum, que paga anualmente em média dez vezes mais, no caso dos professores, ou 13 vezes mais, no caso das enfermeiras. Além disso, Trump não pagou nenhum imposto em dez de 15 anos analisados, utilizando brechas na legislação e deduções contestadas, como gastos com cabeleireiro (US$ 70 mil). O jornal desconstruiu sua reputação de magnata bem-sucedido, retratando-o como um empresário com negócios deficitários que ganha dinheiro explorando a imagem no show business. Mesmo assim, tem uma dívida de US$ 421 milhões que vence nos próximos quatro anos.

“Biden sempre foi o último da classe. Não venha falar de inteligência comigo. Seu filho foi dispensado do Exército por usar cocaína” Donald Trump, candidato à reeleição pelo Partido Republicano

Trump evitou responder sobre seus impostos, dizendo que pagava “milhões de dólares”, sem especificar o período. Também foi encurralado pelo apresentador ao ser questionado sobre seu apoio aos supremacistas brancos, responsáveis por boa parte dos conflitos raciais nos últimos anos. Ele se negou a condená-los, tentando atribuir aos democratas o clima de conflito racial e leniência com a violência. Mas essa é uma das áreas que favorecem Biden. Foi exatamente na questão racial que o democrata se mostrou mais seguro e assertivo, pois tem um histórico reconhecido de apoio à causa negra — além de ter sido vice de Barack Obama.

No debate, o democrata perdeu algumas oportunidades de acuar o presidente. Não conseguiu explorar o oportunismo do republicano, ao indicar a juíza conservadora Amy Coney Barrett à Suprema Corte a poucos dias do pleito, na vaga aberta pela morte da liberal Ruth Bader Ginsburg, um ícone do feminismo. Os republicanos vetaram essa escolha para Obama em 2016, alegando que se tratava de um ano eleitoral. É um ponto importante para Trump atrair o eleitorado conservador. Biden também tentou compensar a agressividade verbal do presidente com golpes baixos, chamando-o de “palhaço” e mandando ele “calar a boca”. Sem surpresa, a pesquisa da rede CBS apontou que 83% dos espectadores consideraram o tom do debate negativo. Por conta disso, a comissão que organiza os debates presidenciais já avisou que prepara novas regras, impedindo que um dos oradores interrompa o adversário nos próximos dois confrontos. Para 48%, Biden foi o vencedor, e 41% viram uma vitória do republicano — números que reproduzem a tendência das pesquisas eleitorais. No final, Trump pode ter pregado para seus apoiadores sem convencer os indecisos. E Biden, ainda que não tenha o mesmo talento retórico, pode ter mais uma vez acumulado pontos apenas pela sua história. Foi assim que ganhou as primárias democratas no início do ano, contra todas as previsões. E seu papel de político tradicional também atrai os conservadores moderados.

“Trump foi o pior presidente da história dos EUA. É difícil ter respostas com esse palhaço. Ele
não tem plano para a pandemia” Joe Biden, ex-vice-presidente, candidato do Partido Democrata

Brasil é citado

O Brasil foi citado no debate, o que reforça os problemas do alinhamento ideológico de Jair Bolsonaro com o presidente americano. Biden fez uma defesa enfática da proteção da Amazônia, citando seu plano de levantar US$ 20 bilhões com outros países para assegurar medidas de contenção do desflorestamento. Se o País não adotar medidas concretas, pode sofrer sanções, ameaçou. Se o democrata vencer, portanto, a cruzada antiambiental de Bolsonaro vai isolar ainda mais o Brasil. Nos EUA, o maior risco do atual processo eleitoral é o questionamento sobre sua legitimidade. Pressentindo o risco de derrota, Trump apontou mais uma vez a possibilidade de fraudes nos votos pelo Correio. Ele se recusou mais uma vez a afirmar que aceitaria a derrota, já antecipando uma disputa judicial “que pode levar meses”. Depois de chegar à presidência movimentando-se na sombra das redes sociais, inclusive com a suspeita de interferência externa, e propagar o discurso de ódio e confronto, Trump investe contra os próprios fundamentos da democracia americana. A eleição de 2020 é a mais importante em uma geração, talvez a mais decisiva da história, apostam analistas. Ainda que seja uma avaliação superlativa, reproduz uma preocupação concreta para o mundo.