Durante muito tempo, as pinturas rupestres, primeiras manifestações artísticas de que se tem notícia, foram atribuídas exclusivamente ao Homo sapiens. Segundo os cientistas, apenas eles teriam a capacidade cognitiva necessária para se dedicar ao pensamento simbólico, incluindo a arte. Mas uma nova técnica de datação demonstra que desenhos em cavernas da Espanha foram realizados há 65 mil anos, muito antes da chegada do Homo sapiens à região. A descoberta muda a nossa perspectiva sobre os neandertais, os verdadeiros autores dos desenhos espanhóis, tidos como parentes distantes e menos evoluídos.

Os pesquisadores usaram um sistema de datação mais fiel e menos destrutivo que o baseado em carbono, a partir de amostras retiradas das cavernas de La Pasiega, Maltravieso e Ardales, em regiões distintas da Espanha. As análises focaram em imagens não figurativas, indicativas do pensamento simbólico. Os resultados da pesquisa foram publicados na revista americana “Science” seis anos depois que um time liderado pelo arqueólogo Alistair Pike mostrou pela primeira vez que algumas das pinturas atribuídas ao Homo sapiens são mais velhas do que se imaginava inicialmente, quase velhas demais para o homem moderno, mas ainda não atribuídas oficialmente aos neandertais.

O estudo é um passo importante em uma linha de pesquisa que busca mudar diversos conceitos considerados errados sobre o neandertal. Desde que o paleontólogo francês Marcellin Boule (1861-1942) o representou como um ser simiesco, nos anos 1900, ele tem um sério problema de imagem. Desde então, outros pesquisadores descobriram que o neandertal era muito mais parecido fisicamente conosco do que Boule imaginou. Evidências do comportamento simbólico desses antigos humanos também foram surgindo. Na Croácia, eles usavam garras de águias em colares. Em Gibraltar e na Itália, acumulavam penas de pássaros para usá-las possivelmente em adereços cerimoniais. Na Espanha, eles criaram joias a partir de conchas e usavam tintas como maquiagem.

Henri Breui

O que faltava era justamente evidências de pinturas nas rochas. As imagens de mamutes sendo caçados são atribuídas ao Homo sapiens. Na ausência de outras provas, pesquisadores atribuíram toda a pintura rupestre aos humanos modernos. Com a nova tecnologia, que analisa o apodrecimento do urânio sobre o tório no decorrer do tempo, provaram que os neandertais estavam pintando as paredes de cavernas 20 mil anos antes do Homo sapiens chegar à Europa.

Os resultados vão muito além da simples atribuição do responsável por um desenho ou outro, desafiando a própria noção de que o pensamento simbólico é responsável por diferenciar os humanos modernos de todos os outros que vieram antes. Os neandertais compartilham 99,7% do DNA com o Homo sapiens, mas este teria prevalecido por conta de sua capacidade cognitiva superior, incluindo o uso da linguagem e a criação artística. Alguns pesquisadores menosprezam a qualidade dos desenhos simbólicos como os encontrados nas cavernas da Espanha, usando-os como exemplo para atestar uma “inteligência inferior”. O que se perde nessa análise, segundo outra corrente de pesquisa, é que a própria manifestação artística é o grande salto cognitivo que deve ser levado em conta.

A partir desses resultados iniciais, pesquisadores devem usar a mesma tecnologia para datar outras pinturas semelhantes encontradas em cavernas espalhadas pela Europa. Elas podem mostrar que outras artes rupestres foram erroneamente atribuídas ao Homo sapiens. De acordo com os próximos resultados, espera-se descobrir se essas manifestações estavam tão difundidas quanto os próprios neandertais ou se foram ações isoladas.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail
C. D. Standish

História reescrita

É possível, ainda, que a descoberta não atribua uma capacidade cognitiva superior ao neandertal, mas apenas comprove outra teoria: de que o Homo sapiens chegou ao continente europeu bem antes do que se imaginava. As evidências ainda são escassas. Na edição de 26 de janeiro da revista “Science”, um estudo indica que um fóssil encontrado em Israel poderia estabelecer a chegada do humano moderno à Europa quase 50 mil anos antes do previsto. Já se sabe que eles foram os únicos a desbravar o mundo. Entre seus parentes distantes, o australopiteco nunca deixou a África e o Homo erectus desbravou apenas o velho mundo. A hipótese, no entanto, ainda é vista com bastante desconfiança. O caso do fóssil de Israel, um pedaço de mandíbula, é insuficiente para cravar uma data. Poderia sugerir apenas uma primeira tentativa de deixar o norte da África em direção a novas terras, ou fazer parte de uma migração em maior escala. Ainda é cedo para ter certeza, mas as próximas descobertas podem reescrever uma parte importante de nossa história.

PEÇAS Desenhos não-figurativos e joias feitas com conchas mostram que o neandertal tinha uma capacidade cognitiva muito superior ao que se acreditava


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias