Pico de acidentes com aviões particulares preocupa o Brasil

Número de mortes na aviação privada voltou a crescer no país em 2024. Investir no treinamento de pilotos, no uso de simuladores e na estrutura dos aeroportos são alternativas para aumentar a segurança

Pico de acidentes com aviões particulares preocupa o Brasil

Um avião bateu num ônibus ao tentar pousar numa avenida movimentada de São Paulo. Outro não conseguiu aterrissar no aeroporto, cruzou uma praça e parou na areia da praia, em Ubatuba (SP); uma aeronave colidiu com uma chaminé antes de atingir uma casa e uma loja de móveis, em Gramado (RS), às vésperas do Natal. Além de explosões e mortes, esses acidentes têm outro ponto em comum: fazem parte da aviação privada.

Ser dono de um avião é como ter um carro, compara Raul Marinho, diretor técnico da Associação Brasileira de Aviação Geral (Abag). O proprietário precisa ter habilitação ou contratar um piloto habilitado, enquanto a aeronave deve passar por uma revisão anual. Também há fiscalizações esporádicas, semelhantes a uma blitz da Polícia Rodoviária.

Quase 60% das mortes na aviação privada

A aviação privada ou particular faz parte da aviação geral, que abrange outras modalidades, como a agrícola, o táxi aéreo e a instrução de voo. Já a regular ou comercial engloba os voos operados por companhias aéreas, nos quais os passageiros compram as passagens.

Nos últimos meses, acidentes com aviões particulares têm chamado atenção no Brasil. Além das mortes de pilotos e passageiros, ocasionaram destruição e deixaram feridos. A aviação privada lidera o ranking de mortes por acidentes aéreos no Brasil, sendo responsável por 470 (quase 60%) de um total de 789, desde 2015, de acordo com o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa).

Na segunda colocação aparece o táxi aéreo, com 65 mortes. Em seguida vem a aviação regular, com as 62 vítimas a bordo do avião da VoePass, que caiu em Vinhedo (SP) em 9 de agosto de 2024.

Após um período de decréscimo em 2022 e 2023, as mortes na aviação privada voltaram a aumentar em 2024, chegando a 58. Neste ano, já foram sete, só nos meses de janeiro e fevereiro. Embora o número não seja tão expressivo – só nas rodovias federais morreram mais de 6 mil pessoas em 2024 –, especialistas apontam medidas que poderiam aumentar a segurança e evitar esses acidentes.

Simuladores de voo: um assunto controverso

Os acidentes fatais de 2024 acenderam um sinal de alerta, avaliou Joselito Paulo, diretor-presidente da Associação Brasileira de Segurança de Aviação (Abravoo). Uma das formas de analisar os acidentes aéreos é olhar para o fator contribuinte – a ação ou omissão que pode aumentar a chance de um acidente – e “a maioria tem por trás o fator humano”.

De acordo com Joselito Paulo, investir em simuladores pode ajudar a evitar acidentes: “O simulador é como uma cabine que está no solo, onde você simula como voar em dias de chuva, em caso de uma pane ou quando um dos motores falhar, por exemplo.” No entanto, isso não é obrigatório para muitos aviões.

“Sua família e seus funcionários vão voar naquela aeronave. Não é melhor você investir no simulador, pagando um pouco mais para que o piloto treine nesse simulador de voo e esteja mais bem preparado?”, questiona Paulo.

Para Raul Marinho, da Abag, a obrigatoriedade do uso de simuladores deve ser discutida. Ele cita o King Air F90, que caiu na avenida paulista em 7 de fevereiro e deixou dois mortos – além de sete feridos que não estavam no avião – e tem uma operação complexa.

“Não é recomendado treinar emergências num avião como aquele. Por isso, nos aviões mais sofisticados, você treina em simulador, porque senão pode converter o treino num acidente. Naquele avião, o uso de simulador não é obrigatório. Será que faz sentido?”

Dois pilotos em jatos

O Cessna Citation 525 CJ1 que caiu em Ubatuba em 9 de janeiro, resultando na morte do piloto e ferindo quatro passageiros, é um jato. Na análise de Marinho, é necessário discutir se aeronaves desse tipo deveriam ter dois pilotos.

“Será que faz sentido um jato, como aquele que se acidentou em Ubatuba, ser operado por um único piloto? Ou melhor: será que se tivesse dois pilotos, ia acontecer aquele pouso numa pista que não tinha o comprimento necessário? É impossível responder a essa pergunta. Mas eu acho que, provavelmente, a chance seria menor.”

Já o acidente que ocorreu em Gramado em 22 de dezembro de 2024 traz reflexões sobre a estrutura dos aeroportos. O Piper PA-42-1000 Cheyenne era pilotado por um empresário, que morreu junto com outras nove pessoas da sua família, além de deixar 17 feridos que estavam no local da queda.

O avião havia decolado em condições meteorológicas desfavoráveis do aeroporto de Canela, que não possuía torre de comando. “Se houvesse uma torre naquele aeroporto, ela não autorizaria a decolagem. Se a questão meteorológica foi realmente um fator contribuinte para aquele acidente, ele poderia ter sido evitado. Então, a infraestrutura aeroportuária no Brasil é um fator que agrava o risco de acidentes”, aponta Marinho.

Segundo ele, a instalação de torres em todos os aeroportos não seria viável devido ao custo, mas seria possível implementar procedimentos de pouso e decolagem baseados em GPS, tecnologia já presente na maioria das aeronaves.

Disciplina e qualificação são essenciais

O professor de Engenharia Aeronáutica da Universidade de São Paulo (USP), James Rojas Waterhouse, costuma dizer que as normas de fabricação de aviões foram “escritas com sangue”, “porque há 100 anos, elas evoluem a partir de acidentes graves”.

“Hoje nós temos uma normalização muito madura, muito avançada e que mostra que a maior parte dos acidentes tem como fator contribuinte outros problemas que não a máquina em si. É muito difícil ter o problema no avião que foi mal desenvolvido ou mal projetado”, explicou o professor.

Nesse contexto, Waterhouse sugere duas soluções principais para diminuir os acidentes: “O primeiro é disciplina operacional. Ou seja, o piloto deve pousar na pista que é adequada para o seu equipamento. Não deve voar em condição meteorológica se não estiver apto. É seguir as regras. Com isso já é possível evitar quase todos os acidentes do Brasil.”

A segunda sugestão, complementar, é a melhora na qualificação dos pilotos. Segundo o professor, muitos profissionais, embora tenham muita prática, sequer leram o manual do avião. Mas também há uma questão cultural: assim como motoristas de carros e caminhões, muitos voam no limite, podendo gerar acidentes.

“Não quero um piloto que vá no limite de tudo. A primeira pergunta que faço para os meus alunos, quando eles estudam projeto de avião, é qual a primeira missão do avião. Não é chegar mais rápido. A primeira missão é pousar com todo mundo vivo. Esse é o primado da aviação civil, que é a segurança.”