Conto os dias para conseguir voltar a viajar e a frequentar grandes exposições de arte. Em tempos de pandemia, acho que viajar é para destemidos. Já que ainda não me vacinei, o jeito foi rever esta semana fotos que tirei de museus no exterior. Foi uma delícia viajar sem sair de casa.

Encontrei imagens de duas exposições de Henri Matisse (1869 – 1954) foram marcantes para mim. Uma delas foi ‘The Cut-Outs’, que aconteceu no MoMa de Nova Iorque (The Museum of Modern Art) e que mostrou sua arte em papel feita na década de 1940. Graças a uma amiga, fui convidada para a avant premier e foi incrível estar praticamente sozinha com as obras. A outra, foi ‘The Shchukin Collection’, que aconteceu no começo de 2017 na Fundação Louis Vuitton, um museu maravilhoso de Paris desenhado por projetado por Frank Gehry. Essa mostra trouxe obras de vários artistas que eu e a maioria dos visitantes nem sabíamos que existia.

A exposição da Fundação Louis Vuitton só aconteceu porque o empresário francês Bernard Arnault, dono do grupo Louis Vuitton-Moët-Hennessy (LVMH), hoje o maior conglomerado de grifes de luxo do mundo, atuou fortemente para reunir as obras e conseguir autorização para expô-las na França, além de conseguir financeira a exposição com apoio da iniciativa privada. O tema virou até discussão entre países, tendo que envolver os Presidentes da Rússia e da França, Vladimir Putin e François Hollande, para vedar eventuais tentativas judiciais de repatriar as obras. Com isso, foi a primeira vez que cerca de 250 obras dos mestres modernos saíram da Rússia para serem expostas no exterior, recriando uma onda de choque visual e emocional, além de mostrar como a história da arte foi construída.

Os quadros apresentados faziam parte da coleção particular de Sergei Shchukin (1854–1936), um colecionador russo, principalmente de arte francesa impressionista e pós-impressionista. Sua magnífica coleção particular é estimada em cerca de 10 bilhões de dólares e hoje faz parte de dois importantes museus (o Pushkin, de Moscou, e o Hermitage, de São Petersburgo). Shchukin fez suas primeiras compras de arte após uma viagem a Paris em 1897, quando adquiriu seu primeiro Monet. Depois, cresceu sua coleção para centenas de obras, incluindo outros 12 quadros de Claude Monet, 8 de Paul Cézanne, 16 de Paul Gauguin, 3 de Auguste Renoir, 4 do Vicent Van Gogh, 54 de Pablo Picasso e 41 de Henri Matisse.

Shchukin apaixonou-se pela pintura de Matisse após ver ‘La joie de vivre’, uma obra fauvista que foi exibida pela primeira vez em março de 1906, no Salon des Indépendants, causando grande indignação pública. Depois, comprou outros quadros, mas foi só em 1908 que ele passou a ser patrono do pintor, chegando a reservar obras antes mesmo delas estarem concluídas. Um exemplo disso é ‘La Desserte, Harmonie en Rouge’. Em 1909, como resultado de sua correspondência e amizade calorosa, Shchukin contratou Matisse para pintar dois painéis enormes para a escadaria principal do Palácio Trubetskoy. As figuras nuas da ‘A Dança’ e ‘A Música’ (1910) causaram um escândalo no Salon d’Automne naquele ano e, inicialmente, impactaram até Shchukin. Felizmente, ele mudou rapidamente de ideia. Vale dizer que ‘A Dança’ é reconhecida como um ponto-chave da carreira de Matisse e no desenvolvimento da pintura moderna. Compare as duas versões produzidas da obra e que estão nos museus MoMA e The Hermitage. “O público está contra você, mas o futuro lhe pertence”, disse na ocasião o colecionador.

No princípio, Matisse seguiu os passos dos impressionistas, mas logo estabeleceu um estilo característico, com cores e brilho (fauvismo). Como muitos artistas de vanguarda em Paris, recebeu uma série de influências e foi um dos primeiros pintores a se interessar pela arte não-europeia. Interessou-se por miniaturas persas, gravuras japonesas e esculturas africanas. Nessa jornada, a Rússia teve um papel importante na sua história.

Matisse já estava se movendo em uma determinada direção antes de ir para a Rússia, e os ícones que viu lá o impressionaram fortemente. Assim que chegou em outubro de 1911 para decorar o Palácio de Trubetskoy, foi visitar galerias de arte, igrejas e conventos. De fato, os ícones influenciaram Matisse, mas o correto é dizer que eles confirmaram sua originalidade. Há uma notável convergência entre a obra de Henri Matisse e a dos pintores russos de ícones. Matisse dizia que para ser artista é preciso livrar-se de hábitos visuais preconceituosos e aprender a ver a vida com olhos de criança, tirando força das cores e da existência de objetos.

As histórias entre os dois são todas curiosas. Certa vez, Shchukin procurou Matisse para encomendar um painel de uma mulher comendo frutas em uma tigela, esperando que a obra iluminasse o inverno russo como um raio de luz. Porém, meses depois, quando a pintura chegou a Moscou, notou-se que estava errada. A encomenda era azul, mas o pintor usou vermelho. Para surpresa de todos, a troca de cor agradou imensamente Shchukin.

Shchukin começou a colecionar arte conforme seu gosto pessoal. Na época, essas pinturas eram consideradas impopulares, sendo desprezadas por importantes museus. Para nossa sorte, ele motivou muitos pintores franceses, comprou muitas telas e ele colecionou arte que prefigurou os cataclismos globais. Seu acervo ficou guardado por décadas e, depois, praticamente acabou dividido entre os museus Pushkin e Hermitage. A coleção de Shchukin no Hermitage, que inclui ‘A Dança’ de Matisse e ‘A Senhora no Jardim’ de Monet, ocupa mais de uma dúzia de salas.

A saga da coleção é tão impressionante quanto a do colecionador. Quando a Revolução Comunista tomou conta de Moscou, o industrial teve que fugir com a família para Paris e abandonar sua coleção de obras. Em outubro de 1918, os bolcheviques nacionalizaram (para não dizer roubaram) 274 de suas obras e criaram o Museu Nacional de Arte Moderna Ocidental. Durante a Segunda Guerra Mundial, as telas foram enviadas para a Sibéria. Em 1948, o ditador soviético Josef Stálin ordenou o fechamento do museu por considerar as pinturas “burguesas”.

Em 1970, por ocasião do centenário do nascimento de Matisse, ‘A Dança’ e ‘A Música’ foi exibida em Paris, pela primeira vez, no Grand Palais. No entanto, sua procedência foi misteriosamente atribuída a uma coleção particular. Desde então, seu neto tenta resgatar o trabalho do avô e colocá-lo em seu merecido lugar de um dos maiores mecenas do mundo.

Por ironia do destino, foi Matisse quem levou Shchukin a Montmartre para conhecer Picasso no outono de 1908. Na época, Picasso vivia uma fase crítica, financeiramente e artisticamente. Shchukin comprou um dos primeiros quadros cubistas de Picasso e, depois, iniciou uma jornada de aquisições, chegando a reunir mais de 50 quadros do pintor espanhol. Injustamente, Henri Matisse não ficou tão famoso como Pablo Picasso, com quem sempre disputou destaque na gangorra da fama (leia a coluna que escrevi sobre as brigas entre Picasso e Matisse). O mundo da arte é assim: vive dando voltas!

Se desejar saber mais sobre um artista ou se tiver uma boa história sobre arte para me contar, aguardo contato pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou Twitter. Para quem deseja dicas de leituras adicionais: Sobre Sergei Shchukin, recomendo o livro “The Collector: The Story of Sergei Shchukin and His Lost”. Trata-se da primeira biografia em inglês sobre o colecionador e que traz à luz a vida de um homem que permanecia praticamente nas sombras antes da exposição de Paris. Para quem deseja saber mais sobre Matisse, é imperdível a biografia de dois volumes de Hilary Spurling, chamada de “A Life of Henri Matisse”. O primeiro volume, “The Unknown Matisse: The Early Years 1869-1908,” foi publicado em 1998. O segundo, “Matisse the Master: The Conquest of Color 1909-1954” apresenta sua trajetória artística e grandes obras-primas.