A Procuradoria-Geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que Sônia Maria de Jesus, mulher negra, surda e muda, resgatada de trabalho análogo ao de escravo em Santa Catarina, volte a ser afastada da família do desembargador Jorge Luiz Borba, do Tribunal de Justiça do Estado, acusado de tê-la explorado por 40 anos.

O subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos argumentou à Corte máxima que o retorno da mulher à casa do magistrado, após decisão do Superior Tribunal de Justiça, é uma medida ‘teratológica’ (absurda), com ‘flagrante ilegalidade’. O documento foi apresentado ao STF sob segredo de justiça.

Santos apoiou um pedido feito pela Defensoria Pública da União, para que Sônia fique longe do desembargador e de sua mulher Ana Cristina até o final das apurações. No último dia 23, o casal foi denunciado ao STJ pelo crime de redução de pessoa a condições análogas à de escravo.

Os Borba rechaçam as alegações e sustentam que Sônia era como um ‘membro da família’. Eles chegaram a anunciar que pediriam para adotar ‘Soninha’.

Logo após a manifestação da PGR ser encaminhada ao Supremo, na noite desta segunda-feira, 6, a Defensoria reforçou o pedido de resgate de Sônia com um parecer psicológico. Nele, é apontada suposta ‘resistência por parte da família Borba em efetivar uma independização por parte de Sônia’.

Na mesma linha, o parecer da Procuradoria apontou como o retorno de Sônia à casa dos Borba ‘vem permitindo a submissão da vítima a severas restrições em sua liberdade individual’.

“O retorno de Sônia à casa dos denunciados compromete não apenas seu processo de aprendizado em Libras, como interrompe a construção de sua autonomia e de desvinculação afetiva (dependência) em relação aos seus antigos patrões”, afirmou.

Síndrome de Estocolmo

Santos citou ao STF a vulnerabilidade de Sônia, dando ênfase à ‘impossibilidade de sua manifestação de vontade de forma livre e inequívoca’. Nessa linha, o subprocurador questionou a ‘real vontade da vítima’ em voltar a conviver com o desembargador e sua família – o que serviu de fundamento para a decisão do STJ.

“As circunstâncias são tão complexas que não soa exagero se comparar a situação àquela pela qual passam as vítimas da ‘síndrome de Estocolmo’, estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor”, pontuou o órgão.

O subprocurador ressaltou a ilegalidade da decisão do STJ que viabilizou o retorno de Sônia à casa dos Borba, narrando como, após o resgate, ela tinha sido acolhida e estava recebendo tratamento, assim como apoio médico e psicológico. Segundo Santos, o atendimento da mulher foi ‘interrompido de forma abrupta’ e a continuidade do mesmo estaria sendo dificultada pelos Borba.

“Mesmo diante de determinações judiciais que preconizavam a observância da manutenção do atendimento que vinha sendo prestado à vítima, têm agido reiteradamente no sentido de inviabilizar o atendimento de Sônia, bem como de impedir a retomada de seu convívio social”, diz o parecer.

O parecer psicológico juntado pela Defensoria aos autos segue a mesma linha de argumentos do subprocurador, indicando como ‘imprevistos’ atrapalharam encontros entre uma psicóloga surda e Sônia. O documento cita por exemplo, a insistência da defesa do desembargador para que um intérprete de libras acompanhasse a sessão de Sônia. Neste caso, a psicóloga viu ‘violação de ética da parte dos Borba’ e apontou como o atendimento deveria ser individual.