RESUMO

• Carlos Bolsonaro é apontado pela PF como membro da “organização criminosa” instalada na Abin durante o governo do pai
• O ministro Alexandre de Moraes, do STF, autorizou buscas em propriedade dos Bolsonaros. PF apreendeu celular.

• Carluxo, como é conhecido, foi ouvido na PF do Rio na terça-feira, mas depoimento segue sob sigilo
• Para Moraes, o ex-diretor-geral da Abin Alexandre Ramagem “monitorou indevidamente inimigos políticos e buscou informações acerca da existência de investigações relacionadas aos filhos do então presidente da República”
• A PF quer esclarecer o envolvimento de Ramagem, dos filhos de Bolsonaro, de policiais da Abin e da PF durante gestão Bolsonaro na operação de uma Abin paralela entre 2019 e 2021.
• P
romotora Simone Sibilo, uma das responsáveis pelas investigações do assassinato de Marielle Franco, estava na lista da “organização criminosa”, o que levanta suspeitas de que gestores da Abin poderiam ter envolvimento no caso
• Especula-se que a atual direção do órgão continue a colaborar com o pessoal do governo Bolsonaro – Alexandre Ramagem incluído
• Conclusão que se pode tirar é que Ramagem não teria agido sozinho para montar a máquina de espionagem sem o consentimento e articulação de Bolsonaro

 

Eram 5h50 da manhã da segunda-feira, 29. Jair Bolsonaro e seus filhos mais velhos, Flávio, Carlos e Eduardo, estavam na casa da família em Mambucada, distrito de Angra dos Reis (RJ), divisa com Paraty, de onde, no dia anterior, haviam participado de uma live para, entre outras coisas, criticar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro conduz o inquérito que investiga a participação de membros da família na utilização ilegal do sistema de inteligência First Mile, da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), durante a gestão do ex-diretor-geral Alexandre Ramagem, que atualmente é deputado federal (PL-RJ). Acompanhados pelo deputado Coronel Luciano Zucco e Renato Araújo, candidato de Bolsonaro a prefeito de Angra, eles saíram para pescar em alto-mar. Jair e Carlos estavam de jet ski e os demais em um barco. Antes de saírem, haviam sido informados de que a Polícia Federal estava se deslocando para o local, mas preferiram fugir para não se encontrarem com os policiais.

Enquanto passeavam de barco, a PF chegou à casa do ex-presidente, onde estavam vários de seus assessores, para realizar operações de busca e apreensão de celulares e computadores, conforme autorização concedida por Alexandre de Moraes. Os federais já haviam feito buscas no gabinete do filho 02 na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, onde apreenderam computadores, celulares e documentos.

Mas o que a PF queria mesmo era investir na grande operação preparada para a casa de praia da família Bolsonaro em Mambucaba e, se possível, apreender os celulares do ex-presidente. Os federais chegaram ao local ainda bem cedo e confiscaram o bloco de anotações que Bolsonaro usou na live de domingo e também o celular de Tércio Arnaud Tomaz, um dos seus assessores que permaneceram na casa de veraneio, e que, durante o governo, era um dos integrantes do “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto e coordenado por Carlos.

Somente por volta das 9h40 é que o advogado da família, Fábio Wajngarten, conseguiu falar com o capitão no barco e relatou detalhes da operação dos federais.

A esta altura, o pequeno distrito de Mambucaba havia se transformado numa praça de guerra:
helicópteros da PF chegando e saindo do local,
pessoas se aglomerando na porta da casa do ex-mandatário,
e muito corre-corre.

Os policiais fizeram buscas na casa, revistaram cômodos e queriam levar todos os celulares que estavam no local, inclusive os de Jair, mas acabaram levando apenas um aparelho de Carlos e outros três de seus computadores.

Os policiais deixaram a residência por volta das 11h, quando os Bolsonaros retornavam do mar, mas a tensão atingiu grau máximo. O ex-presidente e seu filho Carlos chegaram a temer serem levados presos.

Organização criminosa

Carlos é investigado dentro do “núcleo político” do grupo sob comando de Ramagem e é apontado no relatório da PF como membro da “organização criminosa” instalada na Abin durante o governo de seu pai.

Na decisão de Alexandre de Moraes relatando as investigações da PF, sob orientação da PGR, há diálogo entre o vereador e sua assessora Luciana Paula Garcia da Silva Almeida revelando que ela pediu “ajuda” a Ramagem, via Whatsapp, para receber informações de inquéritos “envolvendo o PR e três filhos”.

Segundo o relatório da PF, Luciana se valia de Ramagem para a obtenção de informações sigilosas sobre ações em andamento envolvendo o presidente e sua prole.

“Desse modo, os elementos de prova colhidos até o momento indicam que a organização criminosa infiltrada na Abin também se valeu de métodos ilegais para a realização de ações clandestinas direcionadas contra pessoas ideologicamente qualificadas como opositores, com objetivo de obter ganho de ordem política, posto que criavam narrativas para envolver autoridades públicas, bem como para fiscalizar indevidamente o andamento de investigações em face de aliados políticos”, diz o ministro do STF.

O filho 02 do ex-presidente está sendo, agora, formalmente investigado como integrante da organização criminosa, sob comando de Ramagem, que durante o governo anterior “monitorou indevidamente inimigos políticos e buscou informações acerca da existência de investigações relacionadas aos filhos do então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro”, como afirma o ministro Alexandre na decisão tomada no dia 27, para autorizar a coleta de provas contra Carlos.

Chegou-se a comentar que a PF apreendeu com ele telefones e computadores usados na Abin, mas na verdade esses equipamentos estavam em poder de policiais ligados a Ramagem. Carluxo, como é conhecido, foi ouvido na PF do Rio na terça-feira, mas o teor do seu depoimento está sob sigilo.

Essa foi mais uma ação da PF com o objetivo de esclarecer o envolvimento de Ramagem, dos filhos de Bolsonaro, de dezenas de policiais da Abin e da PF na gestão anterior que participaram da operação criminosa do uso ilegal da First Mile, uma ferramenta de geolocalização da Abin, comprada em Israel, por R$ 5 milhões, para monitorar ilegalmente 60.734 pessoas no período de 6/2/2019 a 27/4/2021, no governo Bolsonaro.

Essas pessoas tiveram seus telefones celulares rastreados, via satélite, sem autorização judicial e sem conhecimento das empresas de telefonia.

Foi assim que a Abin paralela de Ramagem soube de uma reunião do então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com a deputada Joice Hasselmann, na época dois dos maiores inimigos de Bolsonaro.

O monitoramento também pegou o então governador do Ceará, Camilo Santana, que teve até um drone sobrevoando sua casa.

General Heleno

O fato é que além da operação contra Carlos Bolsonaro, as investigações prometem escalar para outro patamar. A PF está convocando o general Augusto Heleno, que durante o governo Bolsonaro era o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ao qual a Abin de Ramagem estava ligada. Heleno deve depor na próxima terça-feira, 6, em Brasília.

A espionagem e atos ilegais cometidos pelo grupo foram tão nefastas que chegaram a tentar deixar sob suspeição os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes. Os magistrados do STF foram vítimas do grupo comandado por Ramagem e por pelo menos sete policiais federais que estavam no esquema do diretor-geral da Abin paralela (todos foram afastados de suas funções por Moraes).

Os dois ministros foram envolvidos numa trama de fake news em que os criminosos tentaram plantar documentos ligando os magistrados a ações ilegais do PCC (organização criminosa que atua dentro dos presídios paulistas). O telefone de uma advogada do crime organizado chegou a ser monitorado dentro do STF e também no interior do Congresso.

O que os investigadores estranharam é qual seria o interesse de Ramagem e sua trupe ao incluírem entre os monitorados o nome da promotora Simone Sibilo, do Ministério Público do Rio de Janeiro, uma das responsáveis pelas investigações a respeito do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista Anderson Gomes, executados em 2018.

Muito se falou do envolvimento de políticos do alto poder no crime, e o monitoramento da investigadora levanta suspeitas de que os gestores da Abin poderiam ter algum envolvimento no caso. A PF quer saber quem foi o responsável por adicionar os dados do currículo de Sibilo nos computadores da Abin.

Em operação deflagrada na semana passada, em que o alvo era Alexandre Ramagem, os policiais chegaram a fazer buscas e apreensões em seu gabinete na Câmara, em Brasília, de onde levaram um celular que pertenceria à agência de inteligência. Desde a decisão de Alexandre de Moraes há suspeitas de que Ramagem continue a receber informações da instituição.

Incomodado com as suspeitas de que a atual direção do órgão continue a colaborar com o pessoal do governo Bolsonaro, o presidente Lula demitiu, na terça-feira, 30, o diretor adjunto da agência, Alessandro Moretti, além de outros sete diretores.

O governo chegou a pensar na demissão também do atual diretor-geral Luiz Fernando Corrêa, mas o presidente ainda não está convencido do envolvimento dele com o esquema e pode ser preservado – ele é muito ligado ao ministro Rui Costa (Casa Civil).

Em entrevista, o presidente afirmou que não havia clima para a permanência de Moretti na instituição, que considerava o diretor demitido como bolsonarista.

Em declaração ao portal G1, Ramagem afirmou que despachava com muita frequência diretamente com o presidente Bolsonaro e com o general Heleno, seu superior direto. “Muitas vezes o Heleno não esteve presente.” O deputado federal irá depor na PF no final de fevereiro.

Filhos blindados

Os investigadores encontraram também indícios de que a Abin, na gestão de Ramagem, teria montado operações para “blindar” outros dois filhos de Bolsonaro de investigações sobre irregularidades: o senador Flávio e o mais novo, o 04, Jair Renan, que é empresário e que hoje vive em Balneário Camburiú (SC).

No caso de Renan, a agência teria atuado na tentativa de evitar que fosse investigado por suspeitas de tráfico de influência no governo.

Ele recebeu um carro elétrico para facilitar negócios de empresários do ramo de mineração e o presidente queria que ele fosse monitorado para evitar que as investigações prosperassem.

Em relação a Flávio, a Abin operou para produzir relatórios que embasariam a defesa do senador no caso das “rachadinhas” — investigação sobre o período em que exerceu o cargo de deputado estadual no Rio de Janeiro, sendo acusado de ficar com parte dos salários dos funcionários do gabinete.

Ainda de acordo com as investigações, a PF diz haver indícios de que Ramagem imprimiu informações sigilosas sobre inquéritos policiais do Rio de Janeiro. Esses documentos, segundo avaliação da PF, “possivelmente” foram impressos para serem entregues ao “núcleo político” por trás do esquema de espionagem ilegal dentro da Abin.

Isso teria ocorrido em fevereiro de 2020. A suspeita é de que o material possa ter sido usado para fins eleitorais nas eleições municipais daquele ano. A lista contém número de inquérito, nome do investigado, o cargo político e o partido da pessoa protegida.

A existência de um “núcleo político” que se beneficiava das informações coletadas pela “organização criminosa” aparece também no rastreamento de informações sobre servidores públicos de órgãos da administração federal.

A decisão de Alexandre de Moraes, que autorizou a busca e apreensão na residência e no gabinete do deputado Ramagem, menciona a compilação de dados de um funcionário do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Ele foi demitido pelo governo depois de ter autuado Jair Bolsonaro, que cometeu uma infração relativa ao meio ambiente antes de ter sido eleito presidente.

“A existência de mais esse núcleo político, argumenta a autoridade policial, se mostrou visível no monitoramento ilegal, para fins políticos, do servidor Hugo Ferreira Netto Loss, responsável por operações de fiscalização ambiental no Ibama, posteriormente exonerado de sua função, em possível represália às ações de combate aos crimes ambientais”, escreveu o ministro.

PF cerca os Bolsonaros em investigação sobre “organização criminosa”
Ministro Alexandre de Moraes autorizou a busca e apreensão no gabinete e na casa de Carlos Bolsonaro (Crédito:Divulgação)

Há outras linhas de investigação que a PF segue dentro da operação destinada a esclarecer a amplitude com que o First Mile foi usado pelos bolsonaristas no governo. Uma delas recolheu informações de que Carlos Bolsonaro seria um dos principais elos que ligam o Palácio do Planalto ao esquema clandestino e ilegal de espionagem operado pela Abin.

Agentes recuperaram até as entrevistas dadas por um ex-ministro de Bolsonaro que foi bem próximo do ex-presidente, mas que rompeu com ele meses depois da posse, em 2019. Gustavo Bebianno foi ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência e morreu em março de 2020 em razão de um ataque cardíaco. Em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, disse que Carlos surgiu “com o nome de um delegado federal e de três agentes para criarem o que seria uma ‘Abin paralela’”.

PF cerca os Bolsonaros em investigação sobre “organização criminosa”
Alexandre Ramagem (esq.) pode ter monitorado não apenas adversários, mas também aliados de Jair Bolsonaro (Crédito:Adriano Machado)

Acuado, o ex-presidente Jair Bolsonaro tentou demonstrar tranquilidade nas poucas entrevistas que concedeu a emissoras de TV. Abusou do deboche e procurou desqualificar as acusações, além de reforçar a tese de que é vítima de perseguição política por parte do Judiciário, em especial do ministro Alexandre de Moraes. “Não querem me deixar em paz, e nem a minha família. Estão acusando meus filhos de serem beneficiários de supostos esquemas de espionagem, mas onde estão as provas?”

No meio político as repercussões colocam em evidência o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e o da Câmara dos Deputados, Artur Lira (PP-AL), acusados de omissão diante de operações policiais envolvendo parlamentares e buscas e apreensões dentro das dependências do Congresso.

Valdemar Costa Neto, atual presidente do PL, chamou Pacheco de “frouxo” por não se insurgir contra as operações. Já Lira estaria bastante incomodado com o fato de não ter sido avisado com antecedência sobre as operações policiais na Câmara e estaria propenso a apoiar projetos que limitem os poderes de ministros do STF.

“Ressalta a autoridade policial a identificação do Núcleo Político, composto por Carlos Nantes Bolsonaro, que, em conjunto com ações do Núcleo Alta Gestão, sob o comando de
Alexandre Ramagem, monitorou indevidamente inimigos políticos e buscou informações acerca da existência de investigações relacionadas aos filhos do então presidente Jair Messias Bolsonaro.”
Alexandre de Moraes, ministro do STF

CPI

Nas duas casas legislativas já surgem iniciativas para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a extensão da espionagem patrocinada pela Abin na gestão de Jair Bolsonaro.

O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) protocolou um requerimento de abertura da investigação e iniciou a coleta de assinaturas. No campo eleitoral, a operação da PF contra Ramagem reduz bastante as chances de ele obter a indicação do PL para o lançamento de sua candidatura a prefeito do Rio de Janeiro, que conta com o apoio da família Bolsonaro.

A principal conclusão que se pode tirar do caso, até agora, é que Ramagem não agiria sozinho para montar essa tenebrosa máquina de espionagem sem o consentimento e articulação de Bolsonaro, O envolvimento de seu filho Carlos apenas vem corroborar com essa tese levantada por investigadores do escândalo.

É consenso entre delegados da Polícia Federal ouvidos por ISTOÉ que o próprio Bolsonaro admitiu, na histórica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, que tinha um sistema particular de inteligência, incluindo Abin, PF, PRF, Receita e Coaf e que estava a caminho de criar o seu Exército particular, com elementos oriundos das Forças Armadas. O objetivo final do ex-presidente era dar um golpe de Estado, como ficou demonstrado nos atos antidemocráticos do 8 de Janeiro.

PF cerca os Bolsonaros em investigação sobre “organização criminosa”

A evolução do caso Abin

Mar. 2023
Polícia Federal abre inquérito para apurar denúncias de espionagem ilegal contra a Abin. Os atos teriam ocorrido entre
2019 e 2021.

Out. 2023
Abin informa ao Ministério Público Federal (MPF) que afastou servidores por suspeita de uso irregular de sistema de geolocalização dentro de investigação interna. MPF abre inquérito.

Primeira semana jan. 2024
Procuradoria Geral da República, com base em investigações da Polícia Federal, envia ao STF (Supremo Tribunal Federal)
pedido de busca e apreensão na residência e no gabinete do deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), diretor da Abin entre 2019 e 2022, quando Jair Bolsonaro (PL) era presidente.

25 jan. de 2024
Alexandre de Moraes, ministro do STF, atende ao pedido da PGR e autoriza a busca e apreensão nos endereços de Ramagem.

29 jan. 2024
Atendendo a novo pedido da PGR, Moraes autoriza a busca e apreensão de documentos, celulares e computadores em domicílios e locais de trabalho do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), filho do ex-presidente Bolsonaro; uma das ações ocorre em Angra dos Reis, em imóvel de veraneio da família.

PF cerca os Bolsonaros em investigação sobre “organização criminosa”
(Divulgação)

Principais acusações contra a Abin

Monitorar ilegalmente autoridades da República, como os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes;

Atuar para proteger dois filhos do ex-presidente Jair Bolsonaro (Flávio e Jair Renan) em investigações de irregularidades;

Monitorar ilegalmente parlamentares, como Rodrigo Maia (então PFL) e Joice Hasselman (então PSL);

Monitorar ilegalmente servidores públicos de órgãos como Ibama;

Monitorar ilegalmente membros do Miistério Público, como uma promotora que atuou na investigação da morte da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018;

Espionagem contra Camilo Santana (PT), então governador do Ceará.