Ao conceder a licença para a Petrobras perfurar um poço exploratório nas águas profundas do Amapá, a 500 quilômetros da foz do rio Amazonas, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) selou o desfecho de um cabo de guerra que durava cerca de cinco anos entre a petroleira e o principal órgão de fiscalização ambiental do Brasil.
A autarquia autorizou a realização de testes que devem durar de três a cinco meses em apenas uma das cinco bacias que formam a Margem Equatorial e, como explicou a presidente da companhia, Magda Chambriard, não configuram produção de petróleo, o que depende de novas autorizações e, em caso positivo, deve começar em seis a dez anos a partir desse primeiro aval.
Os dois lados da moeda
Mesmo neste cenário, o potencial de exploração de combustível fóssil na região justificou o apelido de “novo pré-sal” e a comemoração da licença por integrantes do governo Lula (PT) e as principais autoridades do estado, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil), e o governador Clécio Luís (Solidariedade).
Por outro lado, provocou críticas de entidades do terceiro setor ligadas à pesquisa ambiental, que apontam uma contradição na gestão petista ao trabalhar pela exploração de petróleo ao mesmo tempo em que promove a COP30, cúpula climática da ONU (Organização das Nações Unidas) marcada para ocorrer em novembro em Belém (PA) com a transição energética como principal bandeira. Para contextualizar esse antagonismo, a IstoÉ entrevistou referências nas duas posições.
— Adriano Pires, diretor fundador do CBIE (Centro Brasileiro e Infraestrutura e Energia) e ex-superintendente da ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis)
IstoÉ Na prática, o que distancia o aval para o estudo exploratório da autorização para a produção de petróleo, efetivamente? E como acontecem os testes?
Adriano Pires A autorização está sendo chamada de licença para fazer pesquisa, o que é inteligente por parte da Petrobras, mas não deixa de ser um aval para exploração. A Petrobras está colocando uma sonda em um poço que está a 500 quilômetros da foz do Rio Amazonas e a 175 da costa do Amapá para ver o que encontra: se há petróleo, gás, e em qual quantidade. Esse primeiro poço determina o potencial de exploração dos demais.
Na prática, a companhia está afirmando que, em até cinco meses, dará uma notícia. Em caso positivo, a resposta será que há algo promissor naquela área e, portanto, fundamento para investir bilhões de dólares na perfuração. Para que isso ocorra, o Ibama precisará conceder outras licenças.
IstoÉ Há um prazo para a conclusão dessa estimativa? Quais são as principais dificuldades para isso?
Adriano Pires É difícil estimar um prazo porque depende dos resultados de cada perfuração, mas em um cenário otimista, a tendência é de começar a produção em seis anos; em uma projeção mais pessimista, são 10 anos.
No geral, a perspectiva é positiva. Na Guiana e no Suriname, que são países muito próximos [fazem fronteira com o Amapá], já há produção significativa de petróleo nas bacias identificadas. No caso da Margem Equatorial, há uma pespectiva de produção de até 10 bilhões de barris de petróleo.
A Margem Equatorial tem cinco bacias — Foz do Amazonas, Pará-Maranhão, Barreirinhas, Ceará e Potiguar –, sendo que a Foz do Amazonas é a mais promissora, mas tudo que carrega esse nome, do ponto de vista ambiental, se torna mais difícil. O que eu espero é que esse capítulo da dificuldade para o licenciamento esteja ultrapassado. Se cada nova perfuração demorar mais cinco anos, não há condição de seguir.
O primeiro leilão de bloco na região ocorreu em 2013, com aquisição conjunta por Petrobras, TotalEnergies e BP, mas não houve licenciamento e essas empresas preferiram explorar outras regiões. Se as próximas licenças forem expedidas com maior agilidade, temos uma chance efetiva de substituir a produção da bacia de Santos, que deve começar a declinar do pré-sal a partir de 2030.

Plataforma de exploração no pré-sal: ‘Produção na Margem Equatorial pode substituir bacias’, diz Adriano Pires
IstoÉ Então a Margem Equatorial pode substituir a produção do pré-sal? Caso isso ocorra, o Brasil não voltaria a depender de petróleo importado?
Adriano Pires Sim. O Brasil não está com essa bola toda para deixar uma riqueza dessas embaixo da terra. Essa exploração poderá atrair investimentos, gerar empregos e aumentar a receita de estados e municípios, por meio dos royalties do petróleo, em uma região muito pobre do país [o Amapá tem o menor orçamento estadual da União].
Mais importante, não há uma incompatibilidade entre transição energética, preservação ambiental e exploração de petróleo. O conceito de transição deve se basear no tripé de preocupação com sustentabilidade, segurança energética e preocupação com acessibilidade de energia, em especial para regiões mais pobres. Com políticas adequadas, a exploração de petróleo pode garantir saneamento básico para cidades da região Norte que hoje não têm esse acesso. Quer um problema ambiental pior do que esse? Não há.
IstoÉ Há uma defesa de alguns setores críticos à exploração de que o petróleo é uma fonte energética do ‘século passado’. O senhor concorda?
Adriano Pires A principal diferença é que, no século passado, o petróleo era protagonista. Hoje não há protagonismo de uma fonte só, você precisa de todas elas trabalhando, em especial para a geração de energia elétrica, porque o mundo está muito eletrificado. Se você abre mão de qualquer tipo de fonte, a oferta é reduzida e o preço aumenta, porque a demanda cresce.
O Brasil tem uma vantagem comparativa muito relevante que é a diversidade energética. Mais de 80% da nossa matriz é limpa, mas precisamos de fontes que garantam segurança econômica, como o petróleo, para nos colocar em um patamar similar ao que temos na produção de alimentos. Para isso, há uma necessidade de políticas públicas, ou a vantagem vira desvantagem — e o Brasil é craque em fazer isso.
IstoÉ O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, afirmou que a licença do Ibama vai assegurar a “soberania energética” do país. Ela esteve em risco?
Adriano Pires Há uma importância geoeconômica evidente, que pode ser garantida pela exploração, porque ela se baseia em vantagens comparativas. O Brasil é um protagonista no mercado internacional de petróleo, o que impacta diretamente na maneira como o mundo nos encara. Se não houver bacias produtivas para substituir o pré-sal, o país pode voltar a importar petróleo dentro de uma década e, portanto, perder esse protagonismo.
IstoÉ O histórico da Petrobras justificava o alongamento do processo para conceder a licença?
Adriano Pires Não só da Petrobras. Todas as grandes empresas petrolíferas têm interesse em evitar acidentes ambientais porque, na prática, um episódio do tipo é capaz de levá-las à falência. Há uma redundância muito grande nos sistemas de produção de petróleo, porque qualquer grande acidente é fatal.
Em relação à Petrobras, especificamente, é uma companhia que explora petróleo no Brasil há muito tempo, não teve nenhum caso expressivo de vazamento e é a número um em exploração offshore no mundo. A demora no licenciamento teve um componente ideológico, porque a empresa cumpriu as exigências do Ibama e, ainda assim, houve novas demandas. O órgão de fiscalização ambiental deve ser rigoroso, mas tudo indica que houve uma “operação tartaruga” para adiar a licença.
— Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e presidente do Ibama de 2016 a 2018
IstoÉ A senhora defendeu que as negativas anteriores do Ibama à licença ambiental não tinham caráter político porque o corpo técnico da autarquia é preparado e rigoroso. O que mudou?
Suely Araújo O corpo técnico do Ibama realmente é preparado tecnicamente, não tenho dúvida disso. Mas o percurso desde a rejeição de 2023 levou ao destaque de aspectos bastante específicos, como o centro para tratamento de animais oleados, e subvalorizou temas necessários como o fato de a modelagem da dispersão do óleo em caso de acidentes ter sido realizada com dados desatualizados, sendo que novos dados estão disponíveis.
Este é apenas um dos problemas existentes no processo, há vários outros, como a não realização da consulta prévia, livre e informada com as populações e comunidades tradicionais, exigida pela convenção OIT 169, da qual o Brasil é signatário.
IstoÉ Na prática, o que distancia o aval para o estudo exploratório da autorização para a produção de petróleo, efetivamente?
Suely Araújo Do ponto de vista do licenciamento, há etapas separadas, ainda haverá o licenciamento de produção. Se acharem petróleo no bloco 59, a produção efetiva –- e os royalties –- só virão daqui uma década. Mas do ponto de vista da política das políticas públicas, essa decisão é uma explicitação da posição do governo de expandir a exploração e a produção de petróleo na bacia da foz do Amazonas e em toda a Margem Equatorial.
A narrativa de que estão apenas pesquisando é usada para distorcer a realidade. Pesquisa, com esse nome, ocorre na fase de pesquisa sísmica. Irão perfurar, o que envolve riscos de acidentes e problemas relacionados à própria expectativa gerada pela narrativa governamental de que o petróleo vai resolver os problemas da região, como a expansão urbana descontrolada em Oiapoque.

Ibama: ‘Analistas buscaram se manter autônomos’ sobre licença para Petrobras, diz ex-presidente da autarquia
IstoÉ Há possibilidade de contestar a licença de alguma forma?
Suely Araújo O Observatório do Clima e outras organizações da sociedade civil, em conjunto, protocolarão muito em breve uma ação judicial contra a licença concedida, com argumentos técnicos e jurídicos robustos para sua anulação.
IstoÉ O presidente Lula defendeu a exploração da Margem Equatorial e chegou a chamar de “lenga-lenga” o processo de fiscalização do Ibama. Com base na sua experiência à frente da autarquia, há razão para crer em efeitos dessa pressão para a concessão da licença?
Suely Araújo Vimos essa pressão ocorrer permanentemente desde a rejeição da licença, em 2023. Houve uma campanha intensa. Acredito que os analistas do Ibama buscaram se manter autônomos nesse quadro, não sei se conseguiram.
Na própria licença, por exemplo, há demanda de a Petrobras apresentar uma “nova” modelagem de dispersão do óleo. Se a modelagem está desatualizada em relação aos dados existentes, como se sustenta a concessão da licença?
IstoÉ A intenção do Brasil em se colocar como protagonista na agenda da energia limpa, em especial na COP30, fica comprometida?
Suely Araújo Tenho certeza disso. Realmente não entendi a escolha da emissão da licença às vésperas da COP 30. Considero na prática uma sabotagem à liderança do Brasil na Conferência.