Pesquisa revela relação conflituosa entre Câmara e Executivo; entenda a queda de braço entre poderes

Câmara Executivo pesquisa
Liberação de emendas e mobilização da sociedade estão entre as ações que o governo pode adotar para aprovar sua agenda Foto: Sérgio LIMA/AFP

A relação entre o poder Executivo e o Legislativo no governo Lula (PT) não tem sido fácil e nada indica que irá melhorar. Segundo pesquisa Genial/Quaest que analisou como os deputados federais enxergam o governo e a sua relação com a administração federal, a Câmara dos Deputados acredita que o Executivo deveria dialogar mais, cumprir acordos com líderes e liberar emendas.

Desde o início da atual gestão federal, o ritmo das liberações de emendas tem sido um dos motivos da crise entre o Executivo e o Legislativo. A demora para a indicação de aliados políticos de parlamentares para cargos do primeiro e segundo escalão é outra razão frequente da insatisfação dos congressistas, que reclamam da falta de articulação do Planalto.

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Diante disso, a Câmara, principalmente, tem travado discussões e dificultado a aprovação de projetos importantes para o governo. O governo, por sua vez, tem condicionado a liberação das emendas parlamentares a votações de interesse da gestão petista. Recentemente, o Executivo liberou R$ 7,4 bilhões em emendas para a aprovação da reforma tributária, o maior montante liberado desde o início da administração petista.

Para analisar essa queda de braço entre Executivo e Legislativo, a IstoÉ entrevistou especialistas que avaliaram os resultados da pesquisa e quais mecanismos o governo dispõe para conseguir aprovar sua agenda.

Avaliação do governo

Quando questionados sobre como enxergam a relação entre o governo e a Câmara e qual as suas posições diante do Executivo, os parlamentares responderam:

• Avaliação da relação do Governo Lula com o Congresso: 24% positivo, 32% regular e 41% negativo;
• “Seu partido é governo ou oposição?”: 50% afirmam ser governo;
• “O senhor é governo ou oposição?”: 40% afirmam ser governo;
• “Como avalia a atenção dada pelo Governo aos parlamentares?”: 67% avaliam que o governo dá menos atenção do que deveria aos parlamentares.

“Há uma discrepância revelada pela diferença de 10% (mais de 50 deputados) que confessam publicamente não ter compromisso com a estabilidade, mesmo que relativa, do governo, embora digam que seus partidos sejam da base. Portanto, a conclusão é de que essa estabilidade depende dos projetos discutidos caso a caso”, afirma Valerio Arcary, historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de São Paulo (IFSP).

Segundo o historiador, esses dados revelam que, além da estabilidade do apoio ao governo no Congresso ser muito relativa, os compromissos das bancadas não respeitam as posições dos partidos, mas alinhamentos que são transversais e que remetem às bancadas como a do sistema financeiro, dos bancos, das Forças Armadas e das polícias, do agronegócio entre outras que possuem uma agenda própria de defesa de interesses que são mais poderosos do que a filiação partidária.

Já o cientista político Alberto Carlos Almeida entende que os deputados estão mandando sinais ao governo de que estão dispostos a aprovar sua agenda, embora estejam insatisfeitos.

“A visão dos parlamentares corresponde à realidade, o governo tem maioria. O que eles estão dizendo nessa pesquisa é que eles estão ali para aprovar a agenda que o governo enviar. 67% avaliam que o governo dá menos atenção do que deveria aos parlamentares, mas eles vão ter que responder isso, não tem jeito, porque se eles disserem que o governo dá a atenção devida, o que eles vão pedir para o Executivo?”, explica Almeida.

De acordo com o cientista político, se o governo for bem avaliado pelo Congresso, os parlamentares perdem poder de barganha. “Se você fizer essa pergunta em qualquer época da história, todo parlamentar dirá que tem menos atenção do que merece do governo. Ou seja, os parlamentares estão dispostos a aprovar a agenda do governo, mas eles querem que o Executivo dê mais coisas”, afirma.

Quem pauta a agenda

Em relação à aprovação de projetos e a quem define a agenda das pautas a serem discutidas pela Câmara, os deputados responderam:

• “Quais as chances de Lula aprovar sua agenda de governo?”: 56% disseram que são altas, 37%, baixas;
• 75% dos deputados avaliam que tem a influência devida ou que deveriam ter mais influência sobre o orçamento;
• “Quem tem o maior poder para definir a agenda política?”: 51% afirmam que é o presidente da Mesa diretora da Câmara, 20% os líderes partidários, 11% a Mesa diretora, 6% o Executivo, 5% os parlamentares em geral e 3% os partidos com as maiores bancadas;
• “Qual o fator determinante para o Governo aprovar sua agenda?”: 40% acreditam que o fator determinante para aprovação da agenda é o cumprimento de acordos com líderes e liberação de emendas.

“Como governar com um Congresso tão empoderado? Fazendo luta política. O governo não é somente uma rotina de obra administrativa. Governar exige disputa política na sociedade de projetos que correspondem a interesses de classe e que podem agrupar blocos sociais que cumprem um papel progressivo na transformação da sociedade”, afirma Arcary.

Para ele, não há como um governo garantir os compromissos assumidos diante da sociedade sem ter a coragem de defender suas ideias e fazer luta política para, por exemplo, aprovar a reforma tributária sobre heranças, patrimônio e renda, a qual contraria os interesses dos muito ricos do país. “Ela não passará no Congresso a não ser que o governo utilize os seus instrumentos para fazer a defesa pública e que a pressão venha de fora para dentro do Congresso”, avalia.

Ideologia da sociedade brasileira

Na pergunta “em uma escala de esquerda a direita, onde sr./sra. se classifica?”, 27% se classificaram como de esquerda, 27% de centro e 41% de direita.

“Essa maioria conservadora da Câmara reflete a posição do eleitorado. 62% do voto agregado para a Câmara na eleição de 2022 foi destinado a partidos de direita”, diz Antonio Lavareda, sociólogo e cientista político.

Para Arcary, embora a direita domine a Câmara, a maioria do nosso povo não teria definições ideológicas, algo que ocorre não só no Brasil. Ele cita o exemplo das eleições primárias recentes na Argentina na qual Javier Milei, representante da extrema-direita ultraliberal que defende até a venda de órgãos pelas pessoas, saiu vitorioso.

“Isso não permite concluir que um terço da sociedade argentina abraçou uma ideologia fascista. A sociedade está em permanente conflito e as pessoas abraçam por um período ideias que não correspondem aos seus interesses. Elas podem ser enganadas, mas não indefinidamente e, portanto, a relação de forças é um processo em permanente transformação”, defende o historiador.

Análise Geral

Para Lavareda, o estudo não revela nada de novo. “Temos uma Câmara sobretudo conservadora, onde a agenda legislativa é controlada pelo seu presidente, o deputado Arthur Lira (PP), com a mesa diretora da Casa. A agenda do governo depende para a sua tramitação exitosa das relações com os deputados estabelecidas na base de acordos ligados sobretudo à liberação de emendas”, diz.

Almeida afirma que a pesquisa mostra que os parlamentares, independentemente do espectro ideológico, estão se sentindo poderosos e consideram que a Câmara precisa ser ouvida pelo Executivo, embora apresentem sinais de que estão dispostos a aprovar pautas da administração federal. Sobre a queda de braço entre Executivo e Legislativo, ele defende que os impasses fazem parte da negociação e que a avaliação do presidente Lula é que se ele quiser aprovar projetos mais rapidamente, terá que ceder mais.

“O governo federal não quer ceder tudo logo e demora. Aí o Congresso não vota o que o governo quer. Depois o Executivo cede um pouco. Veja, o Congresso aprovou o arcabouço fiscal e a reforma tributária foi pro Senado. Portanto, é menos um impasse e mais um cabo de guerra da negociação. As coisas serão aprovadas, não deixarão de ser, de forma mais rápida ou mais demorada”, diz Almeida.

Mobilização popular

De acordo com Arcary, o fator determinante para a aprovação das pautas do governo será a conquista da hegemonia na sociedade. “A luta política é uma disputa de ideias, de interesses, mas ela é sobretudo uma disputa de força, ou seja, é preciso construir força social. Isso se dá através de um combate que impõe a necessidade de colocar em movimento os setores mais ativos e organizados dos trabalhadores, do movimento de mulheres, negro, estudantil, ambiental, sindical, cultural”.

Ele afirma que a sociedade brasileira está fraturada e que, portanto, a disputa não é possível se não forem construídas as condições para vencer, o que depende do governo compreender que o seu papel é ir além da mera gestão administrativa.

Países como a Colômbia têm apostado nessa via da mobilização da sociedade para a aprovação das agendas de seus governos. O presidente colombiano Gustavo Petro, visando aprovar reformas estruturais em setores como saúde, educação e segurança, rompeu sua ampla coalização formada por partidos de esquerda e direita após estes se recusarem a apoiar seus projetos e tem mobilizado a população para pressionar o Legislativo em prol das reformas.

Crise institucional

No entanto, Lavareda e Almeida acreditam que essa não seria uma boa opção. “Nenhum Congresso governa com o povo pressionando. Isso é o caminho de fechamento do Congresso. No Brasil, todo presidente sabe que se fizer isso o Legislativo reage e a situação piora”, diz Almeida.

“Esse é um caminho que poderia produzir crise institucional sem grandes benefícios de constrangimento para os parlamentares. E por que isso ocorre? Porque a população não consegue perceber, quando escolhe seus parlamentares, se eles apoiarão o governo ou se serão de oposição, uma vez que o vínculo de representação é quase que totalmente individualizado”, afirma Lavareda.

Segundo o sociólogo, os eleitos têm um elevado grau de liberdade em relação ao controle da sociedade para estabelecer seu comportamento em Brasília e isso não é percebido pela maioria do eleitorado. Ele acredita que esse problema é resultado do modelo eleitoral de representação proporcional de lista aberta adotado pelo Brasil.

Para ele, o caminho para aumentar a fiscalização da sociedade sobre seus representantes seria adotar um modelo de voto proporcional ordenando a lista, a chamada “lista fechada”, na qual o eleitor vota no partido, que define a ordem da sua lista de candidatos.

“Assim, você dá um choque de partidarização na sociedade e com isso você a organiza melhor, diminuindo o número de legendas, porque não temos mais de dez correntes de opinião no Brasil, e tornando o cidadão mais habilitado a acompanhar o desempenho do partido no Congresso Nacional. Hoje os partidos desfrutam de grande autonomia exatamente porque não são enraizados na sociedade, em sua maioria”, analisa.