No último dia 25 de abril, movido – conscientemente ou não – pelos célebres ensinamentos de Sócrates, para quem os magistrados devem ouvir cortesmente, responder sabiamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente, o juiz Luiz Gustavo de Oliveira Martins Pereira revestiu-se de cautela para impedir que a Justiça se envolvesse ainda mais numa contenda no mínimo muito controversa. Contrariando pedido do Ministério Público de São Paulo, ele negou a prisão do empresário Laerte Codonho, suspeito de desmatar uma área de preservação permanente na cidade de São Lourenço da Serra, interior de São Paulo.

Para o Ministério Público de São Paulo, o criador dos refrigerantes Dolly e mais 11 pessoas teriam supostamente destruído mais de cinco hectares de Mata Atlântica para construir uma distribuidora de água mineral paga com dinheiro de propina num terreno às margens da rodovia Regis Bitencourt, que liga São Paulo à região sul do País.

Codonho nega enfaticamente. Garante ter reunido todas as autorizações para retirar parte da mata e erguer a distribuidora. “É um imóvel que eu comprei com uma lavra de água mineral, com autorização para montar o envasamento de água mineral e eu só pedi para uma pessoa que tinha que fazer uma obra maior para implantar uma fábrica de água mineral na qual eu vou gerar emprego na região”, afirma ele. O juiz, além de estranhar o fato de que apenas Codonho num grupo de 12 suspeitos tenha sido alvo de pedido de prisão preventiva, argumentou não ser possível afirmar que o empresário tivesse conhecimento ou concordava com os atos praticados.

Seria esse apenas mais um caso que se somaria a tantos outros no País de entrevero jurídico em torno de uma área ambiental não fossem por dois personagens comuns dos enredos envolvendo o nome de Laerte Codonho há pelo menos três anos. O primeiro é Rogério Raucci, sócio da RD Assessoria Contábil. Raucci atuou por 16 anos como representante jurídico da empresa de Codonho, mas está em litígio com ele desde 2016 sob a acusação de fraude.

Raucci, no episódio do terreno em São Lourenço da Serra, atuou como uma espécie de agente duplo: é ele quem assina pela Dolly como testemunha da compra da área, segundo documento obtido por ISTOÉ, e ao mesmo tempo é o principal denunciante do MP no alegado crime ambiental. Ou seja, quem acusa seria partícipe direto do suposto crime praticado. “Cheguei a entregar um estudo sobre o custo dos serviços (para desmatamento do local) realizado por uma empresa do ramo, salvo engano Terran, mas tal custo ultrapassava R$ 2 milhões”, confessou Raucci em depoimento. O outro personagem é o próprio Ministério Público, mais precisamente a Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo – o que torna a prudência do magistrado em evitar a segunda prisão de Codonho em menos de um ano ao menos compreensível. Explica-se: no dia 21 de dezembro do ano passado, o empresário e seus advogados ingressaram com duas ações de indenização contra quatro procuradores federais e oito do Estado de São Paulo. Eles foram os responsáveis por decretar a prisão e o sequestro de bens do dono dos refrigerantes Dolly num processo assentado num erro já admitido pela Justiça. Codonho passou oito dias detido, acusado de fraude fiscal e lavagem de dinheiro, e mesmo depois de libertado foi impedido de entrar nas próprias empresas. Transcorridos doze meses, no entanto, não há sequer denúncia formal contra o empresário.

Para sustentar a prisão, os procuradores se fundamentaram aparentemente num equívoco. Segundo o MP, Codonho comprava imóveis no Brasil por meio de uma offshore com sede em Nevada (EUA): a Lumia Capital Industries LLC. O empresário não refuta ter criado empresas no exterior, mas a de sua propriedade é outra, a Lumia Industries. “A ideia era me quebrar, mesmo não achando nada contra mim”, alega Codonho. A detenção do criador da Dolly embute outra história nebulosa. Um dos relatórios da investigação foi elaborado pela empresa Neoway Tecnologia Integrada, contratada pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo numa licitação para fornecimento de análise de dados. A logomarca da empresa aparece na primeira página do PIC (Procedimento de Investigação Criminal) contra a Dolly e seu controlador. Haveria, porém, conflito de interesses, uma vez que a empresa, segundo Codonho, seria ligada à Coca-Cola, sua principal concorrente, por meio de investidores e parcerias. “Vivo esse tormento até hoje por causa da Coca-Cola. Desde 2003, eles usam práticas desleais para me prejudicar”, acusou o empresário. Quando foi detido, ele chegou a exibir um cartaz com os dizeres: “preso pela Coca-Cola”.

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ATA DE REUNIÃO Em encontro em março de 2017 com a PGE, o controlador da Dolly comunicou ter sido vítima de operações fraudulentas. No mês seguinte, o foi desencadeada a Operação Clone, que teve a empresa como um dos alvos (Crédito:Divulgação)

Como tudo começou

EM ATIVIDADE Fábrica em Diadema da Dolly foi reativada depois de pagamento de multa (Crédito:Divulgação)

Se a disputa contra o MP é mais recente, o mesmo não se pode dizer do embate de Laerte Codonho com Raucci: remonta a junho de 2016. Foi nesta época que o empresário descobriu que Raucci falsificava chancelas de autenticação bancária em guias de recolhimento de impostos e se apropriava de cheques destinados a encerrar dívidas fiscais e acordos trabalhistas. Em depoimento à Polícia Federal, ao qual ISTOÉ teve acesso, o sócio minoritário da RD Assessoria Contábil, Esaú Vespúcio Domingues, confirma que as fraudes eram realizadas e arquitetadas por Rogério Raucci, mentor de tudo o que acontecia na firma. Um dos esquemas, segundo o depoente, consistia em falsificar sentenças trabalhistas já arquivadas e o objetivo era “arrecadar desvio de dinheiro e quebrar a empresa Dolly”. Recursos das empresas prejudicadas, acrescentou, eram sacados em espécie e na boca do caixa de bancos com Bradesco e Itaú. A própria esposa de Raucci, de acordo com Esaú Vespúcio, recebia na conta pessoal cheques provenientes da fraude. Uma perícia realizada pela empresa Dynamics constatou que as operações fraudulentas somaram R$ 5,7 milhões. “Foram elaborados documentos com informações falsas destinadas a obter cheques de valores expressivos (mais de R$ 163 mil) sob justificativa de pagamento de multa imposta pela Receita. Tais cheques nunca foram depositados em favor da Receita”, atestam os peritos segundo os quais os atos foram praticados entre março de 2013 e junho de 2016. A Dynamics ainda reiterou que, descoberta a trama, o advogado Luis Alberto Travassos da Rosa, contratado da RD de Raucci, acompanhado de uma “outra pessoa”, subtraiu documentos da empresa e abandonaram o local de trabalho. Procurado por ISTOÉ, Raucci preferiu não se manifestar. A PGE disse que agiu de acordo com a lei, “em virtude de fraudes fiscais estruturadas, origem de vultosa dívida tributária”.

Em litígio com Laerte Codonho, Rogério Raucci, com quem o controlador da Dolly cultivava uma relação de confiança de quase duas décadas, acabou se tornando o seu principal algoz e fonte do Ministério Público. Foi por ter descoberto a traição do então funcionário que o empresário se dirigiu ao MP, por iniciativa própria, em março de 2017. Na reunião, ele se propôs a celebrar um acordo para pagamento de débitos com a Secretaria de Fazenda do Estado de R$ 8 milhões. Mesmo com as tratativas avançadas, acabou surpreendido pela Operação Clone, por suspeita de fraude no recolhimento do ICMS, quando suas inscrições estaduais foram cassadas. Em maio, segundo o empresário, ele teve de efetuar o pagamento de R$ 33 milhões – quatro vezes o montante do valor inicial. Para Laerte Codonho, iniciava-se ali uma escalada de “erros” – para não dizer “perseguições” – que culminaram com sua detenção, sequestro de bens, quebra de sigilos bancário e fiscal e busca e apreensão.

 


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