A perda auditiva em idosos vai além da dificuldade de escutar sons ou de manter uma conversa: diversos estudos têm demonstrado que esse problema está diretamente associado ao aumento do risco de declínio cognitivo. A comunicação é essencial para manter o cérebro ativo e, com a redução da capacidade auditiva, há menor entrada de estímulos sonoros, o que compromete a estimulação sensorial cerebral.
Agora, um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e publicado em fevereiro no Journal of Alzheimer’s Disease confirmou que pessoas com perda auditiva tiveram um declínio cognitivo global mais acentuado em comparação com indivíduos sem essa perda.
A pesquisa foi feita com base nos dados dos participantes de São Paulo que integram o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA Brasil), que monitora a incidência e a progressão de doenças crônicas não transmissíveis em servidores públicos de instituições de ensino de seis capitais do Brasil. As avaliações incluíram 805 pessoas que, no início do estudo, tinham entre 34 e 74 anos, e foram realizadas em três momentos ao longo de oito anos: 2008-2010; 2012-14 e 2017-19.
“Por meio dessas avaliações pudemos monitorar a audição e a função cognitiva dessas pessoas, investigando se uma interfere na outra. Foram avaliadas ainda outras condições clínicas, como a existência de doenças crônicas, que podem interferir em ambos os aspectos”, conta Alessandra Giannella Samelli, uma das autoras do estudo e professora associada do curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
Um diferencial da pesquisa é que todos os participantes passaram pelo exame de audiometria para avaliar a capacidade auditiva. Em geral, os estudos se baseiam em entrevistas e autopercepção de piora da audição relatadas pela própria pessoa, o que pode trazer confusões nas respostas.
Além disso, todos os voluntários passaram por seis testes de desempenho cognitivo envolvendo memória, fluência verbal e função executiva (como capacidade de raciocínio e solução de problemas, por exemplo).
Os pesquisadores também coletaram informações sobre estado de saúde e variáveis sociodemográficas como idade, sexo, raça e educação. Os resultados mostram que dos 805 participantes, 62 tiveram perda auditiva – e ela foi associada a um declínio cognitivo global mais acelerado no período do estudo.
A diminuição da audição é comum em adultos mais velhos, com prevalência crescente à medida que as pessoas envelhecem, aumentando de 12% aos 60 anos para mais de 58% aos 90 anos. “O nosso sistema auditivo vai envelhecer, como tudo no nosso organismo. Algumas pessoas vão envelhecer de uma forma melhor, outras de uma forma pior. Aquelas com doenças crônicas como hipertensão, colesterol alto, diabetes, têm maior risco. Inclusive, quem tem diabetes tem duas vezes mais risco de ter perda auditiva do que quem não tem a doença”, afirma a geriatra Thaís Ioshimoto, do Hospital Israelita Albert Einstein.
Mas outras variáveis também interferem na diminuição auditiva, como genética, fatores ambientais e hábitos de vida. “Pessoas que se expõem a sons intensos no trabalho ou no lazer sem proteção adequada, que usam fones de ouvido com intensidade elevada, medicamentos ototóxicos, tabagismo e álcool em excesso, também podem trazer mais risco para o desenvolvimento da perda auditiva”, acrescenta Samelli.
A ciência ainda não compreende completamente os mecanismos que ligam a perda auditiva ao declínio cognitivo, mas algumas hipóteses vêm ganhando força. Uma delas é a da privação sensorial: a falta de estímulo auditivo pode provocar alterações estruturais no cérebro, contribuindo para o surgimento da demência e a redução da chamada reserva cognitiva.
“Quando uma pessoa está ouvindo ou interagindo com outras, o cérebro é constantemente estimulado, o que ajuda a preservar suas funções e a manter a reserva cognitiva. Já quando há uma perda auditiva, essa estimulação diminui, e o cérebro deixa de ser ativado da mesma forma que seria em alguém com audição normal”, explica a geriatra.
A outra hipótese é o impacto do isolamento social – quando o idoso não consegue se expressar ou compreender o que é dito à sua volta, ele tende a se isolar, o que reduz os estímulos cerebrais e pode acelerar quadros de demência. “Embora esteja fisicamente presente com a família, ele se encontra isolado socialmente. Esse tipo de isolamento é um fator importante que pode contribuir para o declínio das funções cognitivas”, pontua a médica do Einstein.
Problema crescente
Diversos estudos apontam a perda auditiva como um fator de risco importante para o declínio cognitivo e, consequentemente, para o desenvolvimento de demência. Mais recentemente, pesquisas têm investigado os efeitos de intervenções – como o uso de aparelhos auditivos – sobre esses desfechos. Um exemplo é o estudo ACHIEVE, que avaliou idosos divididos em dois grupos: metade recebeu aparelhos auditivos, enquanto a outra metade não. No grupo geral, não houve diferença significativa na progressão da perda cognitiva.
No entanto, ao analisar um subgrupo composto por idosos com maior risco de declínio cognitivo, os resultados foram relevantes: houve uma redução de 48% na probabilidade de deterioração cognitiva. “Isso sugere que esse é o público com maior potencial de se beneficiar da intervenção. Além disso, o estudo não identificou efeitos adversos relacionados ao uso dos aparelhos, o que reforça sua segurança”, ressalta Ioshimoto.
Formas de prevenção
A melhor forma de evitar a perda auditiva é manter um estilo de vida saudável, evitar doenças crônicas e proteger a audição com o uso de proteção auricular em ambientes ruidosos, por exemplo. Segundo a geriatra, a geração de pessoas mais jovens, que utiliza fones de ouvido com frequência, tende a estar mais exposta ao risco de perda auditiva. Não se sabe os impactos disso no futuro, especialmente por conta da ausência de pausas para o descanso auditivo.
Cuidar da saúde de forma geral também contribui para preservar a audição. Atualmente, o uso de aparelhos auditivos é indicado mais precocemente do que no passado – antes, esperava-se que o idoso tivesse uma perda auditiva mais significativa para recomendar o uso. “Hoje, sabemos que, ao iniciar o uso nas fases mais leves da perda, a adaptação é muito mais fácil, especialmente entre os idosos”, diz a geriatra. “Mesmo que os benefícios diretos sobre a cognição ainda não sejam totalmente claros, o uso do aparelho auditivo traz ganhos significativos em outros aspectos.”
O uso do aparelho auditivo não previne a perda da audição, mas pode minimizar os impactos negativos que ela traz. “O monitoramento da audição em adultos e idosos é importante, pois, muitas vezes, a pessoa demora para perceber. A perda auditiva relacionada à idade não tem cura e, quanto antes for identificada e reabilitada, menores as consequências para a qualidade de vida”, orienta a professora da USP.
Fonte: Agência Einstein