A cultura do cancelamento pode ser considerada uma das características mais nocivas que a internet trouxe à sociedade. Apesar de as críticas dos “canceladores” às vezes apresentarem algum tipo de fundamento, a maneira como usam as redes sociais para promover ataques é cruel e pode levar um indivíduo à ruína, sem que ele tenha chance de contestar a afirmação ou sequer se defender. É por isso que a possibilidade de ser cancelado passou a ser um dos maiores pânicos da atualidade, principalmente entre as pessoas que dependem da aprovação da opinião pública.

Há um grupo de comediantes, no entanto, que parecem ser blindados contra esse temido fenômeno. Falam o que querem, estimulam polêmicas, provocam discussões sobre temas espinhosos. Os eventuais ataques parecem não colar em suas imagens — o que lhes permite se apresentar como os últimos arautos do politicamente incorreto.

A estreia da 13ª temporada de Curb Your Enthusiasm (Segura a Onda), criada por Larry David, parece reforçar essa condição. Na série, o mal-humorado novaiorquino interpreta a si mesmo, ou uma versão sem censura de si mesmo. É um sujeito totalmente egocêntrico, que não tem travas na língua e fala o que pensa. Isso o coloca em situações divertidíssimas, onde ele sempre parece se dar mal. Questionado se sabia a razão pela qual nunca havia sido cancelado, David respondeu: “Não sei, mas penso muito sobre isso”, ironizou.

Desde os tempos de Seinfeld, um dos seriados mais populares da história, David já disparava seu humor ácido contra todos, sem distinção. Em vez de interpretar a si mesmo, suas ideias eram apresentadas por George Constanza, seu alter-ego.

Talvez seja esse o seu segredo: como não poupa ninguém, torna-se um alvo mais difícil de ser atingido.

David é judeu, mas os judeus estão entre seus temas preferidos — e sempre sob uma visão autodepreciativa. Ridicularizar o fanatismo religioso, aliás, é seu passatempo favorito. Basta lembrar do episódio em que ele transforma a fatwa, a ordem de morte emitida pelo governo iraniano contra o escritor Salman Rushdie, em um musical da Broadway.

Para a atriz Susie Essman, que contracena com David, o medo do cancelamento tornou mais difícil fazer comédia hoje em dia. “Larry não se importa em abordar temas politicamente incorretos. Ele não liga se está ofendendo alguém e nos dá liberdade. Ele não parece ter medo de colocar o dedo na ferida”, afirma Susie.

Perco a audiência, mas não perco a piada: a briga dos comediantes contra a censura
Dave Chappelle: campanha da comunidade LGBTQIA+ quase o levou a encerrar a carreira (Crédito:Mathieu Bitton)

Comédia stand up

Ricky Gervais é outro comediante que não teme o cancelamento. Famoso pela criação e atuação na série britânica The Office — que nos EUA ganhou versão liderada pelo ator Steve Carell —, ele segue apresentando especiais de comédia stand up com temas que deixam as minorias em polvorosa.

Ironicamente, seus shows estão entre as maiores audiências da Netflix, e é por isso que a plataforma de streaming não cogita censurá-lo.

Gervais, de 60 anos, usa o argumento da liberdade de expressão para justificar suas piadas. “Todos têm o direito de não ver um show porque não gostam do comediante. Mas quando as pessoas defendem que alguém seja despedido apenas porque não gostam da suas opiniões, isso é errado”, afirmou.

“Desligar a própria TV não é censura. Querer que a outra pessoa desligue a TV dela, é. A cultura do cancelamento é fascista.”
Ricky Gervais, comediante

O tom ácido de Gervais, porém, o levou a ser descartado como apresentador de grandes eventos após sua performance à frente do Globo de Ouro, em 2020. Apesar de ser comum ver os apresentadores pegando no pé de grandes estrelas nas cerimônias de entrega do Oscar, por exemplo, Gervais exagerou e “errou a mão”, no jargão dos comediantes. Mas parece que nem ligou: “Prefiro ser cancelado a não ser divertido.”

Dave Chappelle, outro popular comediante, ficou a um passo do cancelamento, mas conseguiu se reerguer. Em um especial para a Netflix, suas piadas transfóbicas levaram a comunidade LGBTQIA+ a se organizar para promover uma campanha contra ele.

Isso motivou Chappelle a lançar o especial Encerramento, onde ele avisava que ia parar de falar sobre o tema e dar um tempo — mesmo passando boa parte do especial fazendo o contrário.

O boicote contra ele foi grande, e Chappelle saiu de cena por um período. No ano passado, voltou com O Sonhador, um novo especial na Netflix. Embora tenha incluído algumas piadas que poderiam ser consideradas negativas pela comunidade trans, parece que o assunto foi superado — pelo menos até a próxima ameaça do temido fantasma do cancelamento.

Perco a audiência, mas não perco a piada: a briga dos comediantes contra a censura
Ricky Gervais se recusa a fazer concessões: “Prefiro ser cancelado a não ser divertido” (Crédito:Divulgação )