A condenação de Jair Bolsonaro (PL) por uma tentativa de golpe de Estado e a indicação de um novo ministro do Supremo Tribunal Federal pelo presidente Lula (PT) colocaram novamente o Judiciário no centro do debate político brasileiro.
Para Leonardo Sica, presidente da seção de São Paulo da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o processo da trama golpista teve “uma série de desrespeitos” ao trabalho das defesas e a sentença final, que condenou o ex-presidente a 27 anos e três meses de prisão, foi exagerada.
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“Existem dois crimes principais pelos quais as condenações ocorreram, golpe de Estado e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, em que um deles bastaria [para o estabelecimento das penas]”, afirmou Sica nesta entrevista à IstoÉ. Doutor em direito penal, o presidente da OAB-SP ainda avaliou que houve excessos nas penas aplicadas aos participantes do 8 de janeiro — que chegam a 17 anos e seis meses de prisão.
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IstoÉ Em junho de 2024, a OAB-SP criou uma Comissão de Estudos para a Reforma do Judiciário com a promessa de entregar propostas dentro de um ano para o Congresso Nacional. Como estão os trabalhos desse grupo?
Leonardo Sica O trabalho da comissão é o nosso principal atualmente. Nós percebemos que o Judiciário tem uma importância cada vez maior para o país e a necessidade de adequá-lo a essa expectativa enorme que a sociedade brasileira tem de produção e distribuição de Justiça.
De junho até pouco mais de um mês atrás, trabalhamos numa fase chamada de diagnóstico, consultando a base de dirigentes da OAB, advogados e universidades para ter um diagnóstico confiável para colocar em prática as ideias de reforma que nós, de certa forma, já tínhamos. Esse diagnóstico foi feito e agora a comissão está se debruçando sobre alguns eixos para, dentro de cada um deles, elaborar as propostas que serão encaminhadas ao Congresso e ao STF.
IstoÉ A Comissão enviou à Comissão de Constituição e Justiça do Senado perguntas a serem incluídas na sabatina que os parlamentares farão com Messias. Qual é o objetivo dessa iniciativa?
Leonardo Sica As perguntas foram feitas e enviadas antes mesmo da indicação ser feita, porque a nossa preocupação é sabatinar bem o indicado, qualquer que fosse. O processo de indicação ao Supremo é algo que prende a atenção da sociedade brasileira e tem um rito constitucional previsto, em que o presidente da República indica e o Senado sabatina.
Nós entendemos que a democracia é isso, seguir a regra do jogo, mas em vez de fazer como muitos fazem e só detonar o rito — que é similar ao seguido na maioria dos países –, quisemos mostrar que o procedimento existe e pode ser aprimorado por meio do exercício da nossa capacidade democrática. Os senadores são eleitos pelo povo, a OAB é uma instituição da sociedade e nós percebemos que poderíamos participar desse processo de questionamento. São perguntas elaboradas para dar participação popular em um tema importante.
“Percebemos que poderíamos participar do processo de sabatina“.
IstoÉ Em uma entrevista que nos concedeu, o professor Rubens Glezer, da FGV, avaliou que os presidentes da República têm buscado um “acesso permanente” ao STF com as indicações recentes, priorizando aliados políticos em detrimento de juristas com atuação reconhecida. O senhor concorda?
Leonardo Sica O advogado-geral da União [caso de Messias] é um advogado do governo, e esse é o quarto AGU indicado ao Supremo. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso indicou o seu, que é o ministro Gilmar Mendes; o presidente Lula já indicou o seu em outra oportunidade, o ministro Dias Toffoli; e Jair Bolsonaro também, com o ministro André Mendonça. Mais uma vez, um advogado-geral da União está sendo indicado.
É legítimo, porque a condição prevê, e natural que um presidente indique um nome de sua confiança pessoal, mas esse não pode ser o principal requisito. Tem de haver confiança na capacidade técnica e jurídica, e nós já vimos o presidente Lula fazer isso algumas vezes nos mandatos anteriores, com as indicações dos ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Ayres Britto [todos aposentados], por exemplo, que foram técnicas. Está acontecendo uma mudança, e essa consolidação de que o ministro do Supremo é alguém da estrita confiança do presidente da República é muito ruim.

Lula ao lado de Messias: ‘Natural que presidente indique um nome de sua confiança, mas esse não pode ser principal requisito’
IstoÉ Uma das questões enviadas pela OAB ao Senado é justamente quanto à participação de magistrados que tenham integrado governos em julgamentos que envolvem a União. Falta uma restrição institucional?
Leonardo Sica Falta uma regra clara de impedimento, de suspeição [dos ministros]. O que se espera de um juiz, fundamentalmente, é que ele seja imparcial, equidistante em relação aos envolvidos no processo. O que garante imparcialidade é criar regras claras e públicas. Não há como entrar na mente do juiz e saber se ele é parcial ou não, e faltam restrições estabelecidas não só quanto à condição humana — o impedimento para julgar parentes, por exemplo –, mas em outras situações.
Hoje eu sou um advogado privado. Se amanhã me torno juiz, como posso julgar alguém que foi meu cliente? É isso que precisa ficar definido. As regras existem justamente para que as instituições republicanas estejam acima do interesse pessoal. Se um ministro [do STF] foi advogado do governo, ele deveria julgar uma causa de interesse do governo? Eu entendo que não, e isso não é uma crítica pessoal.
“Um ministro que foi advogado do governo não deveria julgar
uma causa de interesse do governo no STF“.
IstoÉ E quanto à relação entre ministros e empresas que eventualmente têm casos julgados no Supremo, como a participação em palestras e eventos patrocinados, deveria haver uma restrição?
Leonardo Sica Dar uma palestra ou participar de um evento ao lado de empresários não gera uma suspeição, porque isso pode ser muito episódico, mas se eu advoguei para uma empresa, já defendi seu interesse, não estou apto a julgá-la futuramente. Uma relação profissional, de associação, remuneração, deve ser impeditiva.
IstoÉ Criticados por parlamentares, integrantes de cortes superiores têm defendido que o Judiciário atua diante da omissão do Legislativo. Por outro lado, o ministro André Mendonça disse que seus colegas de corte praticam “ativismo judicial”. O Supremo tem invadido a competência dos outros Poderes?
Leonardo Sica O Legislativo tem uma parcela de responsabilidade relevante nisso. A atualização do Marco Civil da Internet [exemplo dado por Mendonça], o controle das redes sociais, era uma questão há anos parada no Congresso, sem nenhum consenso ou perspectiva de aprovação. Aí o Supremo foi provocado a agir, como é, com frequência, pelos próprios partidos polícos.
Agora, qual foi a última grande discussão do Legislativo? Forçado por uma circunstância terrível, o Congresso passou a debater segurança pública, mas antes disso havia uma inércia. A democracia funciona assim, você tem os Poderes e, quando um deixa de agir, o outro é chamado.

Sede do Supremo Tribunal Federal: ‘Quando um Poder deixa de agir, o outro é chamado’
IstoÉ Na esfera da tensão entre Poderes, o Congresso discute há algum tempo uma proposta para limitar as decisões monocráticas em cortes superiores. Uma reforma efetiva do Judiciário passa por essa limitação?
Leonardo Sica Passa, porque falamos muito em autocontenção, e limitar as decisões monocráticas é algo que naturalmente gera autocontenção, porque ao se determinar que todas as decisões sejam colegiadas, elas se tornam mais maduras.
Há um excesso de decisões individuais, sendo que um tribunal, conforme o significado do dicionário, é um colegiado de pessoas que julga algo. As decisões monocráticas desvirtuam a própria natureza desse conceito. É um recurso que serve para decidir sobre questões urgentes, em que não há tempo para esperar o colegiado se reunir e julgar. Fora isso, não deveriam ser tomadas.
IstoÉ O processo que terminou com a condenação de Bolsonaro, generais e outros militares por uma tentativa de golpe teve limitações impostas pelo ministro Alexandre de Moraes à comunicação dos advogados de defesa, relatos de falta de tempo para acesso aos autos e prisões preventivas alongadas. O amplo direito à defesa e ao contraditório foi respeitado?
Leonardo Sica Houve vários desrespeitos à atuação dos advogados ao longo do processo e opressão ao exercício da advocacia. A OAB reclamou quando eles apareciam, como nos exemplos citados e ainda na lacração de telefones, proibição de gravar audiência, destituição de advogados dos autos, enfim, uma série de atropelos.
A Justiça criminal brasileira é muito arbitrária, marcada por uma cultura de autoritarismo. Quando transformamos o Supremo em um tribunal criminal, coisa que ele não deveria ser, aumenta a chance dessas arbitrariedades ocorrerem. E o principal problema é que, por se tratar da última instância do Judiciário, não há a quem recorrer [contra um arbítrio], ao contrário do que acontece em outras varas.
Seria leviano dizer que isso tenha relação com o resultado do julgamento, que deriva das provas e dos fatos. Mas houve maus exemplos, coisas indesejáveis, e isso tudo dá margem para que os insatisfeitos com as sentenças possam questionar os julgamentos. Um julgamento é justo quando segue as regras do processo, e seria muito importante que o Supremo desse o exemplo.
“Houve vários desrespeitos à atuação dos advogados“.
IstoÉ Há margem para algo na linha do que ocorreu com a Operação Lava Jato, em que dezenas de sentenças foram anuladas posteriormente em razão de irregularidades nos processos?
Leonardo Sica A Lava Jato começou em primeiro grau e foi sendo submetida aos filtros dos tribunais, havia sobre o juiz Sergio Moro [hoje senador] outras instâncias. Aqui não há, então o risco [de anulações] é muito pequena.
Pode haver alguma revisão criminal ou uma mudança na composição do Supremo que permita outras interpretações, mas o processo estará numa fase muito avançada da execução das penas, com pouco a ser feito.
IstoÉ No mesmo caso da trama golpista, as penas para os condenados pela participação na invasão do 8 de janeiro chegam a 17 anos e seis meses de prisão, equiparável à aplicada para um homicídio qualificado. São punições excessivas?
Leonardo Sica Sim. Penas altas de prisão só devem ser aplicadas a pessoas que não podem andar na rua porque representam um risco para a sociedade. Elas são contraproducentes, pouco úteis e muito onerosas para a sociedade.
O importante no caso do 8 de janeiro era processar julgar e condenar os participantes e mostrar, como eles admitem, que houve uma tentativa de golpe e ela deve ser sancionada. Mas essas pessoas não deveriam ser retiradas do convívio social por quase 20 anos, e acredito que essa seja a margem de espaço para que o próprio tribunal reveja suas decisões.
“Penas altas só devem ser aplicadas a pessoas que
representam um risco para a sociedade“.
IstoÉ No caso dos condenados pela autoria da tentativa de golpe, caso de Bolsonaro e aliados, houve exageros?
Leonardo Sica Sim. Existem dois crimes principais pelos quais as condenações ocorreram, golpe de Estado e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, em que um deles bastaria [para o estabelecimento das penas].

Bolsonaro, condenado a 27 anos e três meses de prisão: ‘Houve exagero nas penas’
IstoÉ Um dos projetos discutidos no Congresso, o chamado PL da Dosimetria, propõe justamente a redução das penas desse grupo de condenados. Cabe ao Legislativo fazer essa alteração?
Leonardo Sica Há uma regra constitucional que estabelece que a lei penal favorável retroage. Ou seja, se o Congresso vota uma lei a qualquer momento dizendo que a pena de homicídio passa a ser de dois anos, essa mudança é aplicada a todos os condenados anteriormente. É legítimo, portanto, que os parlamentares façam isso, mas é muito ruim que seja feito casuísticamente, por causa do fulano. Isso deslegitima o processo.
IstoÉ O PL Antifacção, conforme aprovado na Câmara, prevê um aumento do tempo de prisão para crimes praticados por integrantes de facções. Como se estabelece um critério adequado para o endurecimento de punições sem cair no populismo penal?
Leonardo Sica Estamos diante de mais um capítulo de populismo penal. Desde que a Lei de Crimes Hediondos foi editada, o Congresso vem aumentando penas para os delitos mais graves.
Trata-se de uma ilusão, porque isso não produz qualquer redução da criminalidade, não faz com que as pessoas andem mais seguras na rua ou demove os criminosos. Faz somente com que algumas pessoas passem mais tempo na cadeia, o que no geral ajuda o crime organizado. Desde o massacre do Carandiru [em 1992], começamos a inchar as prisões com jovens que passam muito tempo detidos e se tornam mão de obra aliciável para as facções.
Quando se prende o líder de uma facção criminosa, ele é substituído no dia seguinte sem que isso desmantele a organização. O que tem efeito comprovado é impedir que esses grupos tenham acesso facilitado ao dinheiro e infiltração no poder público, como tem sido demonstrado por operações recentes em São Paulo [a Carbono Oculto]. Uma resposta violenta gera mais violência.
“Jovens são detidos por muito tempo e se tornam mão de obra das facções“.
IstoÉ O texto discutido no Congresso é uma resposta meramente violenta?
Leonardo Sica É uma solução inócua e já testada. Em 1990, havia uma epidemia de sequestros. O crime foi tornado hediondo, com pena aumentada, mas isso não resolveu nada. Os sequestros praticamente acabaram quando os métodos de investigação foram aprimorados — entre outras coisas, não se consegue mais sacar ou manejar dinheiro do resgate, nem manter uma pessoa irrastreável por muito tempo.
Além disso, há uma sobrecarga do sistema carcerário. Construir novas prisões consome muito recurso público, que poderia ser investido em outros lugares, como o aumento do efetivo policial e das viaturas para vigilância.
IstoÉ Um modelo defendido por alguns políticos brasileiros é o Direito Penal do Inimigo, que permite o endurecimento do Código Penal para criminosos considerados inimigos do Estado, que neste caso seriam os facionados. Como o senhor avalia esse conceito?
Leonardo Sica É mais um modelo de populismo penal. O que um político mais precisa é eleger inimigos, porque isso cria um consenso ao redor deles. A megaoperação no Rio de Janeiro [contra o Comando Vermelho], que deixou 121 mortos para prender 80 criminosos e não deteve o líder da organização, mostrou que a ideia de um inimigo é simbólica e se esgota em si mesma.
A necessidade que temos é de políticas públicas constantes, de vigilância, monitoramento, melhoria de circulação nas áreas urbanas, e o corte do fluxo financeiro.
IstoÉ Qual balanço o senhor faz de seu primeiro ano de mandato na presidência da OAB-SP?
Leonardo Sica É um trabalho de continuidade de um projeto de mudança, iniciado com a presidente Patricia Vanzolini, de quem eu fui vice. Nós assumimos a entidade depois de um período de paralisia de mais de 20 anos e começamos a implementar reformas que são difíceis em uma instituição quase centenária. Nós conseguimos encerrar essa primeira fase e, agora, planejamos democratizar todos os serviços da OAB por meio do acesso digital. Com muito custo, trabalho e otimismo, estamos preparando a entidade para o futuro.
IstoÉ Pretende disputar um novo mandato?
Leonardo Sica No momento, não. Tenho dois anos de mandato pela frente e uma rotina difícil, porque a presidência não é um cargo remunerado; eu preciso me dividir entre a OAB, meu escritório e minha família, o que é muito pesado. Quero concluir meu mandato entregando tudo aquilo que me comprometi a fazer aos mais de 100 mil advogados que me aprovaram.