Pelé é lenda viva do Brasil. Desculpem o lugar-comum dessa figura de linguagem, mas se até ex-presidente do país mais rico do mundo a utiliza, por que não podemos nos valer dela também? Ouçamos o ex-mandatário dos EUA Barack Obama, quando aqui esteve em maio de 2019 para participar de painéis sobre economia e recursos digitais — ou seja, absolutamente nada a ver com futebol. Disse ele, mal pisou o chão brasileiro: “quero conhecer a única lenda viva que ainda não conheço. Quero conhecer Pelé”.

Não desejou ser apresentado, em primeiro lugar, a políticos egocêntricos e papagaios de pirata, a embaixadores com formais mesuras, a tecnocratas de cifrões nos olhos. Obama quis estar vis-à-vis com aquele que definiu como sendo “o homem que representa o Brasil no planeta”.

1968 Com a então rainha da Inglaterra Elizabeth II após jogo no Maracanã: o País com status de realeza

E assim os dois conversaram, e assim Pelé acrescentou mais uma personalidade mundial à galeria daquelas das quais já estivera junto. E, mais importante, fez os brasileiros inflarem o peito, não para “matar” a bola que vem de um lançamento, mas, sim, para se sentirem orgulhosos de sua nacionalidade.

Nada diferente do que ocorreu, por exemplo, quando o ex-senador democrata americano Robert Kennedy, em 1965, foi ao vestiário do seminu e ensaboado Pelé, no Maracanã. Ser fotografado nessa circunstância, ao lado do craque embaixador, era prestígio social e político. Popularidade garantida quando regressasse aos EUA.

1965 O senador Robert Kennedy, no vestiário do Maracanã, cumprimenta Pelé ensaboado: glória brasileira e americana

As novas gerações, simplesmente pelo fato de serem ainda jovens e terem ingressado no mundo de Pelé em uma espécie de terceiro ou quarto tempo de sua vida, provavelmente sabem apenas que ele é “o rei do futebol” e que ninguém teve tanta intimidade com o jogo, a ponto de o cronista Armando Nogueira ter escrito: “se Pelé não tivesse nascido gente, teria nascido bola”.

Os que são bem mais jovens precisam saber que, fora de campo, Pelé também foi Pelé ao dar ao Brasil uma identidade nacional, ao dar ao Brasil o espetacular respeito de autoridades políticas internacionais, ao dar ao Brasil a merecida nobreza. “Pelé conseguiu tudo isso porque traduz o estilo brasileiro”, disse à ISTOÉ o antropólogo Roberto DaMatta. “Ele representa o encontro de diferentes culturas no País”. Quando se fala de juventude associa-se a ela, inconscientemente, a noção de tempo. Já falamos em terceiro ou quarto tempo. Vamos então viajar para trás, para antes do primeiro.

Deposto Getúlio Vargas da Presidência do Brasil em 1946, pondo-se fim à ditadura do Estado Novo iniciada em 1937, vivia-se aqui o natural e saudável sentimento de liberdade acrescido do alívio advindo do pós-guerra. A democracia começou então a vigorar junto à alma brasileira otimista e esperançosa por novos dias naqueles meados do século 20.

Intelectuais, acadêmicos e artistas ansiavam por uma definição da identidade nacional engendrada a partir de lídimos valores culturais brasileiros. Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda já o tinham feito, respectivamente, com Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil.

Embora não o publicasse imediatamente, Antonio Candido vinha pondo um ponto final em Formação da Literatura Brasileira e, pouco tempo depois, Raymundo Faoro introduziria Max Weber e o conceito de Estado patrimonialista na interpretação sociológica do País com Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Tudo seguia o seu curso. Mais: os brasileiros se gabavam de ter a cantora Carmen Miranda como a primeira sul-americana a ganhar uma estrela na calçada da fama, em Hollywood.

Mas eis que “tinha uma pedra no meio do caminho”, “no meio do caminho tinha uma pedra”, como escrevera Carlos Drummond de Andrade sobre as vicissitudes da existência humana e das nações. Ou melhor: tinha os jogadores Schiaffino e Ghiggia no meio do caminho do Brasil. Era 1950, Maracanã, partida final do Mundial de Futebol. A seleção brasileira faz 1 a 0 contra o Uruguai. O locutor Mário Filho escancara a garganta: “gol de Friaça, quase vem abaixo o Maracanã”. Era mera força de expressão em relação à comemoração do público de 173.850 pessoas, mas o certo é que, por não estar com a estrutura concluída, o Maracanã correu mesmo o risco de desabamento. E aí vem Schiaffino e faz 1 a 1, e aí vem Ghiggia e faz 2 a 1 para os uruguaios.

1966 O papa Paulo VI recebe, no Vaticano, Pelé e sua primeira esposa, Rose: bênção na lua de mel

Ouvia-se, então, mosca voar. Olhos nublados por lágrimas olhavam olhos por lágrimas nublados. A passionalidade nacional, formulada por Sérgio Buarque citado acima, se explicita, sobretudo, no futebol, nos equivocadamente chamados “crimes de amor” (muito comuns já naquela época) e no preconceito racial. O fato é que nascia na alma dos brasileiros, com o trauma da derrota, aquilo que o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues chamou de “complexo de vira-lata”.

De que adiantava o Brasil dos anos dourados, se houve o 2 a 1 da derrota contra o Uruguai? De que adiantava o programa de desenvolvimento de “cinquenta anos em cinco”, de Juscelino Kubitschek, se perdemos por 2 a 1? De que adiantavam as mãos entrelaçadas dos amantes (e o White Horse) nas glamurosas boates do Rio de Janeiro? Os boleros e sambas canções, depois do 2 a 1, de que adiantavam? A boemia rica em música e poesia, as madrugadas com concursos de bêbados na areia de Copacabana para ver quem urinava mais longe (o compositor Ary Barroso costumava ganhar), de que adiantavam? De que adiantava um Brasil delicado? Nelson Rodrigues explicava: “por complexo de vira-lata entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Pois é, tratava-se da perda da autoestima devido ao futebol.

Como registrou, no entanto, o compositor, cantor e escritor Chico Buarque, mestre em futebol no estilo do craque Pagão, “atrás de tempo sempre tempo vem”. E veio a Copa de 1958, na Suécia, com o Brasil campeão e o mundo deslumbrado curvando-se perante um rapazola de pés mágicos: Pelé. Aos 17 anos, Pelé! E já então ele começava a ser embaixador do Brasil, como arrematou Nelson Rodrigues: “Pelé tirou do Brasil e dos brasileiros o complexo de vira-lata”. Por influência de Pelé, recém-consagrado, Frank Sinatra e Bing Crosby gravaram nos EUA Aquarela do Brasil, de Ary Barroso e Francisco Alves. Pelé começava a sua carreira “diplomática”, elevando o nome do País. Éramos conhecidos no exterior somente pelo café. Veio a rima: café e Pelé.

1986 O ex-presidente dos EUA Ronald Reagan convidou Pelé para ir à Casa Branca: Sarney pegou carona

É esse o Pelé que os muito jovens ainda desconhecem, é esse o Pelé que integrou o Brasil aos quatro cantos do planeta, é esse o Pelé que deu ao brasileiro, cá dentro e lá fora, o orgulho de ser, justamente, brasileiro. Era o Brasil da Bossa Nova que chegava com o disco Chega de Saudade, era a rua Nascimento Silva 107 onde morava Elizete Cardoso no Rio de Janeiro, imortalizada por Vinicius de Moraes. Era um Brasil, também, que tristemente começa a ver movimentações em quartéis que resultariam na tragédia do golpe de 1964.

Mas era o Brasil de Pelé, e sem descanso para o nosso querido embaixador. Embaixador sem Itamaraty, que as mais famosas e respeitáveis personalidades mundiais faziam questão de conhecer. Eis alguns casos exemplares: em 1968, em visita oficial ao Brasil, a então rainha da Inglaterra Elizabeth II entregou no Maracanã uma taça de campeão a Pelé. Em Paris, em 1971, ele esteve com a atriz Brigitte Bardot em campanha contra o câncer.

Em 1986 foi convidado pelo presidente Ronald Reagan a ir à Casa Branca e levou consigo José Sarney. Como se disse, esses são somente alguns atos de nosso embaixador. Cada um deles, no entanto, significou uma goleada de valorização do Brasil para além de nossas fronteiras.