Para ir além do brilho fugaz dos fogos de artifício e chegar àquele de estrela, “que pode ser vista a qualquer momento porque está sempre lá, no céu”, um esportista precisa preencher requisitos extraordinários diante de seus fãs, como explica Katia Rubio, psicóloga do Esporte. “O importante, para um atleta, é sair da média. E Pelé impressionava. Bateu todos os recordes de sua época, quebrando limites.” Além disso, o auge como jogador de futebol se deu na transição do caráter romântico do esporte para o profissionalismo movido pelo marketing, coincidindo ainda com a chegada da televisão. “A carreira dele foi catapultada pelas imagens que podiam ser repetidas e vistas por todo o planeta. Esse impacto mitifica o Pelé. Tanto que, quando vai para o Cosmos, aos 34 anos, já nem é para jogar, mas como espetáculo. Ele vira arte.”

Antes da tevê, o futebol só tinha significado dentro de campo e “Pelé era futebol, mais forte do que qualquer produto”, como observa a professora. “Sabia-se de ouvir dizer, ou de ouvir a descrição do gesto técnico pelo rádio. Ou lendo nos jornais. De ver, mesmo, poucas vezes: somente indo ao estádio.” A tevê iria mudar a história do esporte ao colocar os torcedores em campo, a uma “curta distância” dos jogadores. Por meio dela se deu a magia: era possível sentir a emoção de participar do evento. “A tevê altera a lógica e, com suas imagens, os espectadores passam a mitificar o Pelé pelo que veem dele, por sua competência, pela excelência de atleta que atua fora da média e por seus resultados”, diz Katia. “Sua carreira foi amplificada pela plástica de suas jogadas, agora internacionalizadas. Os lances passaram a ser ‘concretos’ e, como a tevê permite ver as imagens inúmeras vezes, também se forma uma linguagem do futebol.”

Mas, mesmo reconhecido como “extraordinário”, Pelé tem suas fragilidades, que o aproximam dos fãs. “É visto como um deus, mas é humano. A deidade é imortal, mas o herói morre — é seu feito que se torna imortal.”

O eu e o outro

Da mesma forma que Katia considera mais um ponto da genialidade “do Edson” ao se referir a Pelé em terceira pessoa, como uma separação intuitiva, o antropólogo Roberto DaMatta também vê nessa “solução” uma inteligência excepcional: “Ali ele acena sua humanidade como alguém falível, que vive problemas como todo mundo, a humildade à parte do astro. Muitas celebridades de hoje não têm essa consciência”.

Para Katia, é exatamente por isso que Pelé é fundamental para as novas gerações do futebol: “Ele reafirma sua importância como figura sólida, ao contrário de outras que se desmancham no ar”.

DaMatta afirma que o futebol “não é o ópio do povo, mas acende o povo” por um lado positivo e ainda tem papel importante em instâncias da vida brasileira. Como antropólogo, lembra: “Coroado rei, Pelé resgata dívidas que temos com os negros. Seu comportamento admirável como celebridade nos remete a um conjunto de símbolos e ideais encarnados por ele, de auto-estima, por exemplo, e de um estilo brasileiro que tem ginga e que mistura culturas”. Por isso o futebol é um esporte excepcional, observa DaMatta, que pode ser tomado como resposta a várias situações da condição humana. “Permitiu, por exemplo, que invertêssemos colonizadores e colonizados. Dentro do esporte que inventaram, nos tornamos mais importantes que eles. Pelé é um dos principais atores na virada de excelência do Brasil — e arrasta gerações. É como se estivéssemos em campo como camadas mais pobres que se transformam em estrelas de primeira grandeza.”

Além de goleador, Pelé tinha uma visão de jogo fantástica, que aliava à inventividade, assinala Da Matta, que ainda cita vigor físico, talento, rigidez em treinamentos e caráter, para destacar: é muito difícil encontrar tudo isso junto em um esportista. E ainda humildade, que também é lembrada pelo publicitário José Estevão Cocco, responsável pelas primeiras campanhas de Pelé como “garoto-propaganda” nos anos 1960, para os ternos das lojas Ducal e o fortificante Biotônico Fontoura: “Ele era muito novinho, muito simples e simpático, supernatural. E prestativo. Ficava lá, enquanto prendiam o terno com alfinetes nas costas, para ficar esticadinho…” Não à toa se tornou um ídolo, muito requisitado para propaganda de lojas, eletrodomésticos, móveis, vitaminas, Viagra. “Primeiro, era para páginas duplas de jornal; depois, para a tevê.”

Zé Cocco lembra: “Em uma época que garoto-propaganda nem era muito valorizado, ele arrasava. Era um fenômeno futebolístico: ótimo atleta, tinha popularidade. Era comunicativo, ser humano exemplar, não bebia, não consumia drogas, era de família pobre que chegou ao sucesso… São valores muito importantes para o público. Com imagem completamente limpa, não tinha ninguém contra ele. Assim, a marca Pelé não tinha preço. Que empresa não gostaria de se aliar a ela? Foi um salto no marketing esportivo. O Santos virou marca universal graças ao Pelé, que se torna ‘mais conhecido que o papa’, como se dizia.”

Mesmo depois que vendeu a marca Pelé, observa o publicitário, ele se manteve extremamente afável, até inocente, porque atividades dele mesmo passaram a ser controladas pela empresa que adquiriu os direitos. “Mas Pelé seguia sendo aquele menino de sempre, do interior. Com uma aura que a gente mais intui do que vê. Um deus ao vivo.”