Peça ‘Quase de Verdade’ explora temas como coragem e opressão

Em uma das lembranças mais vivas da infância, a atriz Débora Duboc, de 56 anos, ouve a voz da sua mãe, a professora Elisa, lendo A Paixão Segundo G.H., romance de Clarice Lispector (1920-1977). A garota tinha 6, 7 anos, no máximo, e, na ansiedade de estimular a filha, Elisa recorreria às obras adultas não só de Clarice, mas também de Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. “Ficava imaginando aquela barata, adorava, mas o curioso é que nunca li os livros infantis da Clarice para meus filhos”, conta a artista, mãe de Theo, de 21 anos, e Otto, de 15. “Preferia inventar histórias para que eles me ajudassem a desenvolvê-las.”

A atriz Carol Badra, de 47 anos, por sua vez, sempre foi devota do universo infantil da autora antes e depois do nascimento da filha Regina, de 12 anos. Em 2005, Carol protagonizou a peça A Vida Íntima de Laura, montada pela Cia. Los Lobos Bobos, e, em 2018, com Regina na plateia, contracenou com Mel Lisboa em Pescadora de Ilusões, versão de outro clássico de Clarice para crianças, A Mulher que Matou os Peixes. “Mel e eu líamos essas histórias para nossos filhos, que regulam de idade, e vibrávamos com eles entrando nas nossas discussões e nos sentimentos dos personagens.”

Confinadas por causa da pandemia e atentas à movimentação dos meninos em meio à nova rotina, Débora e Carol recorreram a Clarice, em parceria com a Cia. Los Lobos Bobos, para o projeto que estreia neste fim de semana. Sob a direção cênica de GpeteanH, Petrônio Gontijo e Marco Lima, as intérpretes criaram uma versão digital de Quase de Verdade, filmada pelo cineasta Toni Venturi, que pode ser vista neste sábado, 14, e domingo, 15, às 16h, no YouTube do Teatro Arthur Azevedo. Nos quatro fins de semana seguintes, até 12 de setembro, a peça será exibida nas plataformas dos teatros Paulo Eiró, Alfredo Mesquita, Cacilda Becker e João Caetano, nos mesmos horários, também com ingressos gratuitos.

Quase de Verdade foi publicado em 1978, depois da morte da escritora, e contou com uma coautoria especial, a de seu cachorro Ulisses. Criou-se a lenda de que Clarice entendia os latidos do cão, e ele, o narrador do livro, teria ditado a trama depois de observar os quintais da vizinhança.

O enredo gira em torno de uma figueira frondosa que começa a secar. À sua volta, as galinhas põem ovos e os galos cacarejam alegremente, como se a vida fosse uma festa sem fim. A figueira desenvolve a inveja, depois a raiva e assume o papel de ditadora. Obriga as galinhas a colocarem ovos até a exaustão. “Mas chega um dia em que a árvore enorme se depara com o enfrentamento das galinhas tão pequeninhas e revoltadas com a opressão”, explica Débora. “Tanto que, depois da primeira leitura, o Theo falou para nós: ‘mãe, vocês entendem que tudo isso trata da luta de classes, não?’.”

Não foi só Theo quem acompanhou os bastidores. Os ensaios, ao ar livre, no pátio da casa de Débora, contaram com o apoio de Regina na assistência de direção e até como ponto eletrônico. “Ela ficava com o texto na mão e me soprava a deixa quando eu esquecia das palavras”, conta Débora. Carol salienta que a experiência com a filha foi um raro ganho na pandemia. “O teatro nos distancia da convivência familiar, então a minha forma de entregar carinho sempre foi contando com a presença dos meus pais na plateia, depois da minha filha e suas colegas e, agora, estamos todos juntos, inclusive a Débora, uma amiga de mais de vinte anos”, declara.

Formada em teatro, Carol assinava a produção da peça Senhorita Else, dirigida por Marcio Aurelio e que rendeu a Débora o Prêmio Shell de melhor atriz de 1996.

O excesso de autocrítica impedia Carol de subir à cena. “Eu me achava péssima, e a Débora me estimulou a reverter essa trava”, conta ela, dando risadas. O teatro infantil foi o passaporte para Carol confiar no próprio taco porque, segundo ela, público mais sincero não existe. “Graças a isso, eu também tenho experiência como manipuladora de bonecos e essa parte da peça foi mais fácil para mim”, declara, em relação aos bonecos criados por Marco Lima.

Débora confessa que gelou nos primeiros ensaios, afinal jamais tinha lidado com fantoches, mas percebeu que bastava, como uma criança, se jogar no playground. “Quando vi, surgiu uma encenação em que a gente se relaciona com os bonecos de forma leve e uma hora é Clarice, daqui a pouco interpreta um cachorro e volta a ser Clarice para, depois, virar outra coisa e, assim, me reconectei com o teatro, com os amigos e até com minha mãe, que perdi aos 15 anos e, de certa forma, participa do trabalho com a gente”, diz Débora.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.