Dizia o grande Joseph L. Mankiewicz, roteirista nos anos 1930: “Já que o cinema se meteu a falar, tem o dever de dizer alguma coisa”. Duas vezes vencedor do Oscar de melhor roteiro e direção, por Quem É o Infiel? e A Malvada, ele sempre se arrependeu de haver trocado um romance Lawrence Durrell, Justine, pela adaptação de Cleópatra. Elizabeth Taylor não apenas recebeu o maior salário pago até então a uma atriz (US$ 1 milhão), como conseguiu impor Mankiewicz como diretor. Foram tantos os problemas que ele sequer se referia a Cleópatra – dizia “aquele filme”. Obra-prima, ‘malgré tout’, marca, em 1963, o adeus do autor aos mistérios do feminino. A partir daí, Mankiewicz filma a miséria dos homens.

Seu Volpone é de 1967. No original, chama-se The Honey Pot (O Pote de Mel). No Brasil, Charada em Veneza. Não é exatamente Ben Jonson, mas Frederick Knott, Mr. Fox of Venice, baseado no romance de Thomas Sterling, The Evil of the Day, esse sim, inspirado em Volpone. Como raposa astuciosa, o rico avarento de Jonson finge-se de moribundo para extorquir os que sonham estar incluídos em seu testamento. Volpone é um bestiário de personagens negativas – “corruptas, miseráveis e ridículas”, segundo Otto Maria Carpeaux. Mas é um primor de comicidade e um marco do teatro elisabetano, a peça em que o pessimismo de Shakespeare é ultrapassado pelo de Jonson.

Faz todo sentido montar Volpone no Brasil de 2020. Na versão de Mankiewicz, Mr. Fox (Rex Harrison) chama a seu Palazzo Venezia três antigas amantes. Finge estar morrendo. Elas vêm. A princesa arruinada Capucine, a estrela de cinema que deve até a alma em impostos, Edie Adams, e a milionária hipocondríaca Lone Starr(Susan Hayward), que não viaja sem sua enfermeira/secretária, Maggie Smith. Olha o spoiler. Lone Starr acaba com a expectativa das outras ao revelar que é legalmente casada com Mr. Fox, mas é morta. O anfitrião está arruinado e tudo é parte de um crime premeditado. Maggie confidencia a Mr. Fox que sabe de tudo – quem matou – e ele se suicida. Num golpe de mestra, ela se vale de um documento sem assinatura para dar o próprio golpe. Fica milionária.

Considerado um filme à clef, cheio de referências secretas aos universos da literatura e do cinema, – como A Malvada em relação ao teatro -, Charada em Veneza é a obra de um erudito consciente de que seu tempo está acabando em Hollywood. O cinema mudava na segunda metade dos anos 1960, e Mankiewicz reconhecia o próprio outono. Sua obra, plena de artifício, é uma celebração do teatro – e da palavra.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.