16/04/2022 - 8:00
Paulina Salas está preocupada com a demora do retorno do marido, o advogado Gerardo Escobar, à casa. O público, que acompanha a peça A Morte e a Donzela, percebe a ansiedade da mulher, inexplicável por parecer excessiva diante de um problema banal. Com a chegada do homem, tudo se acalma até que um pequeno detalhe vai despertar trágicas lembranças em Paulina.
Escrita em 1990 pelo chileno Ariel Dorfman, A Morte e a Donzela, cujo texto sai agora em livro pela editora Carambaia, logo se tornou um sucesso mundial por tratar com precisão de temas delicados e aparentemente inconciliáveis: tortura e perdão. Na peça, Gerardo retorna ao lar graças à ajuda de Roberto Miranda, médico que lhe deu carona após seu carro enguiçar. Ao ouvir a voz de Miranda, porém, Paulina estremece: é a do homem que, quinze anos antes, a torturou e a violentou inúmeras vezes quando esteve presa durante a ditadura militar chilena.
Movida pela vingança, Paulina inverte os papéis e prende Miranda em sua casa, iniciando um processo de julgamento do qual a plateia é instigada a participar. É importante contextualizar o momento: em 1990, o Chile iniciava sua fase de redemocratização depois da violenta ditadura de Augusto Pinochet. Mas, mesmo com a eleição do presidente civil Patricio Aylwin, Pinochet se manteve no comando das Forças Armadas, e a elite econômica continuava sendo a mesma que colaborara com a ditadura.
Nessa situação, a investigação sobre a violação dos direitos humanos ocorrida no período revelou-se frágil e sempre ameaçada de retrocesso, especialmente se as vítimas da violência tivessem o direito de se pronunciar. Na peça, Dorfman equilibra bem essas forças na presença do algoz, da vítima e também de Escobar, que não foi torturado como a mulher, portanto não entende a profundeza do problema.
Encenada em todo o mundo, A Morte e a Donzela (título inspirado no Quarteto de Cordas nº 14 em Ré Menor, do compositor Franz Schubert, música tocada durante as sessões de tortura comandada pelo médico) foi levada ao cinema por Roman Polanski em 1994, com a atriz Sigourney Weaver e o ator Ben Kingsley nos papéis principais, e ganhará nova montagem que estreia dia 21 de maio, no Teatro Parlapatões, com direção de Laerte Mello.
Um dos temas da peça seria a busca da verdade, sua relatividade e até a impossibilidade de encontrá-la?
É verdade que a peça postula que, dadas as interpretações contraditórias do passado, existe a dificuldade de três pessoas se lembrarem desse passado traumático da mesma forma. Ao mesmo tempo, porém, A Morte e a Donzela estabelece que coisas terríveis aconteceram, que a dor vivida é verdadeira, que as traições existiram e que a justiça deve ser procurada. Penso tentar relativizar a verdade e simultaneamente acreditar que existem verdades incontroversas. Quero dizer que esta busca não é fácil ou óbvia e que se tem de percorrer um matagal de perguntas e armadilhas antes de se encontrar alguma resposta.
A reconciliação é realmente possível quando feridas parecem ser permanentes?
Há feridas irreparáveis, mas a peça exige que nos questionemos sobre a necessidade de reconciliação. A Morte e a Donzela não aprofunda essa questão, o que fiz numa peça posterior, Purgatório, ainda não encenada no Brasil (há alguns anos, houve montagem espanhola com Viggo Mortensen), que é uma espécie de continuação dos dilemas de A Morte e a Donzela. Em Purgatório, confronto – na vida após a morte – duas pessoas que se prejudicaram mutuamente e têm de encontrar uma forma de se perdoarem.
Criminosos em geral costumam se arrepender depois que viram “vítimas”. Assim, o que muda se o culpado se declara arrependido?
Creio que o arrependimento é fundamental para a justiça e um dos métodos é o encontro entre as vítimas e os perpetradores. Claro que não é fácil. Muitas vezes nem sequer é possível saber se este arrependimento é verdadeiro ou se é uma “encenação”. Também explorei esse caso em um filme da BBC TV, Prisoners in Time (estrelado por John Hurt), no qual um britânico que foi prisioneiro dos japoneses procura e encontra o homem que ajudou a torturá-lo durante a Segunda Guerra Mundial.
Paulina não está disposta a perdoar seu torturador, mas tampouco o médico pede seu perdão. O perdão não seria, portanto, um dos temas da obra?
A peça centra-se na tentativa de encontrar a verdade. O perdão só vem – e talvez – quando há acordo sobre o que aconteceu, sobre as responsabilidades.
Não é possível encerrar ciclos de ódio, principalmente os movidos por lembranças obsessivas?
No caso de Paulina, o ódio não foi colocado nem escolhido por ela. Foi a história – e especificamente a figura de um médico que participou da sua tortura – que a condenou a esse trauma. Cabe a ela, como ser humano maravilhoso e digno, decidir se vai se assemelhar ao homem que a destruiu ou se pode vencer esse terror, não se tornar o inimigo. Não é fácil. É um teste que ela vai ter de enfrentar de dia e de noite, e nós com ela.
A memória ajuda a salvar ou a condenar?
Não tenho uma resposta para essa pergunta, porque sem memória estamos perdidos, especialmente se for uma vítima. Ou um país que, se esquecer seu passado, pode perder seu caminho, por exemplo, no caso do Brasil, onde muita gente esqueceu o que significava estar na ditadura e elegeu como presidente alguém que queria repetir o autoritarismo do passado, sem se importar com a dor dos outros. Mas, ao mesmo tempo, meu trabalho adverte, por meio do personagem Gerardo, que é perigoso permanecer preso ao passado, o que pode acabar se tornando armadilha da qual não se escapa, que acaba sendo a sua única identidade.
Ainda é atordoante ouvir uma pergunta de Paulina (“Quem me escuta?”), pois faz lembrar as inúmeras vítimas reais cujo silêncio ainda ecoa no Chile.
Escrevi isto no Chile durante o primeiro ano após o fim da ditadura, quando foi alcançado um acordo – necessário do ponto de vista da paz social – que estabeleceu a investigação dos mortos, mas não dos vivos, ou seja, deixando milhares de pessoas prejudicadas que pensavam que, com a chegada da democracia, suas vozes seriam ouvidas, em silêncio. Senti que este era o grande drama de meu país: a coexistência de vítimas e perpetradores em um clima de impunidade e esquecimento. E, ao descobrir tal conflito, vi que não foi apenas o Chile que sofreu com este drama, mas muitos outros lugares do mundo. Talvez seja por isso que minha peça acabou sendo, durante vários anos, uma das mais encenadas em todo o mundo. É possível que agora, com a tentação do autoritarismo, a peça se torne mais uma vez relevante.
O humor pode tornar uma crítica mais sofisticada?
O humor é uma das grandes armas contra a estupidez e o poder cego. Há vários momentos em A Morte e a Donzela nos quais o público ri – nervosamente, mas ri – e imediatamente se questiona: como posso rir de uma situação tão terrível? Mas é precisamente porque a situação é terrível que é necessário rir. E o humor é uma boa maneira para os derrotados fazerem ouvir sua voz, pois muitas vezes significa não confrontar os poderosos diretamente, mas obliquamente, com menos riscos.
O que espera da presidência de Gabriel Boric, que acontece depois de um longo período na recente história chilena, iniciada com a eleição de Patricio Aylwin?
Como já comentei em algumas colunas publicadas no Estadão e em entrevistas a outros jornais no Brasil, tenho grandes esperanças de que Boric, se for bem sucedido, possa se tornar um modelo para aqueles, ao redor do mundo, que querem alcançar mudanças fundamentais na economia e na sociedade usando métodos pacíficos. Ele também representa uma nova geração, feminista, ambientalista, respeitosa dos povos nativos e, o que pode ser importante para a América Latina, uma opção de esquerda libertária, que reivindica democracia e pluralismo, e que não tem medo, por exemplo, de criticar um tirano como Daniel Ortega, um falso sandinista que traiu os ideais de liberdade sem os quais não pode haver uma sociedade justa.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.