A execução de Ruy Ferraz Fontes, delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo entre 2019 e 2022, tirou a vida de um dos principais algozes do PCC (Primeiro Comando da Capital), cujas atividades superaram há anos o narcotráfico.
Responsável pelas principais ações que inibiram ou enfraqueceram as operações da facção nas últimas décadas, o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas) do Ministério Público de São Paulo, foi “jurado de morte” junto com o ex-delegado e é um dos investigadores mais capacitados para interpretar seu assassinato.
Nesta entrevista à IstoÉ, o promotor relatou ter alertado Fontes mais de uma vez sobre os riscos corridos por ele, que trabalhava como secretário de Administração de Praia Grande (SP), sem escolta, desde a aposentadoria, analisou a execução como um “recado” a outras autoridades e avaliou que, sem a forte escolta policial que o acompanha, ele terá o mesmo destino do ex-delegado em menos de uma semana.
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Gakiya diz que PCC mata para dissuadir; leia entrevista
IstoÉ Quais feitos da carreira de Ruy Fontes o colocaram na mira do PCC?
Gakiya Doutor Ruy foi um ícone nas investigações contra a organização criminosa, em que atuou desde a década de 1990. Foi o primeiro a indiciar o Marcola [Marcos Willians Herbas Camacho, líder do PCC preso desde 1999] e, em 2006, idealizou e coordenou a transferência de toda a liderança da facção para a penitenciária [de segurança máxima] de Presidente Venceslau, o que revoltou os criminosos e provocou os ataques de maio [quando 564 pessoas foram mortas no estado].
Depois disso, ele foi jurado de morte. Em 2010, chegamos a evitar um plano de execução que ocorreria em frente ao 69º Departamento de Polícia. Acontece que essas ordens do PCC nunca foram retiradas. Em 2024, avisei pessoalmente ao Ruy que estavam cobrando a morte de autoridades, em lista que incluía meu nome e o dele.

Ruy Ferraz Fontes, ex-delegado geral da Polícia Civil de SP, foi executado três anos após se aposentar
IstoÉ Embora estivesse jurado de morte, o delegado se aposentou em 2022 e, desde então, não tinha mais um papel ativo no combate ao crime organizado. O que explica uma execução nestas condições?
Gakiya O PCC age como uma máfia, seus integrantes executam ordens para se vingar e transmitir recados, inclusive ao Estado. A ideia de uma execução como essa, caso as investigações responsabilizem a facção, é tanto se vingar de uma autoridade que atrapalhou o crescimento da organização quanto dissuadir agentes da ativa.
Os exemplos se acumulam. Temos o Antônio Machado Dias, juiz que foi morto em 2003, o Ismael Pedrosa, que dirigia o presídio do Carandiru no massacre de 1993 — mencionado no primeiro estatuto da facção –, executado em 2005, e o Ruy, que assim como eu, sabia há alguns anos que estava jurado de morte.
Uma vez eu ouvi de um ex-integrante do PCC, hoje no programa de proteção a testemunhas: ‘Um dia o senhor vai se cansar da escolta, ou perdê-la, e então eles irão matá-lo‘. Não há como afirmar que a facção mandou matar o Ruy, mas quando os criminosos atingem uma autoridade, transmitem um recado às demais, inibindo investigadores, policiais, promotores e juízes de combaterem o crime organizado.
É como dizer: ‘Se você se meter com o PCC, terminará assim‘. Essa conduta é típica do terrorismo, porque você atinge alvos pontuais e, com isso, causa um terror indiscriminado em toda uma classe.
“Ao atingir uma autoridade, há um recado às demais.
É como dizer: ‘Se você se meter com o PCC, terminará assim’“.
IstoÉ Já houve discussão para tratar o PCC como organização terrorista. Isso impactaria de alguma forma no combate à facção?
Gakiya Para o Brasil, não teria impacto, até porque nós já temos uma legislação que define terrorismo, e o PCC não se enquadra nela, assim como o Comando Vermelho e demais facções. Não basta um ato de natureza terrorista, exige-se uma finalidade, que pode ser política, religiosa ou racial [para a classificação]. Se o PCC explodir a Estação da Sé na manhã de uma segunda-feira e matar milhares de pessoas, o ato não será considerado terrorista, porque a organização não se enquadra como um grupo terrorista na nossa legislação.
Neste cenário, não haveria nenhuma vantagem em um enquadramento desse tipo, está fora de discussão. O que não significa que seus atos não tenham natureza terrorista. O PCC tentou explodir a Bolsa de Valores, o Fórum da Barra Funda, executaram inimigos em público e paralisaram a cidade de São Paulo em 2006. Queimaram ônibus, bancos, comércios, sequestraram um repórter, atacaram delegacias, todos são atos que têm essa natureza.
IstoÉ O PCC tem demonstrado, portanto, capacidade reiterada de atingir autoridades que são seus algozes. Isso pode ser corrigido ou ao menos reduzido por um sistema melhor de proteção aos agentes?
Gakiya Infelizmente, não há no Brasil nenhuma legislação que assegure proteção a policiais, policiais penais, promotores e juízes que tenham a vida em risco devido à atuação direta contra o crime organizado. Nada institucionalizado que proteja aqueles que estão, efetivamente, exercendo suas funções.
Claro que há autoridades sob proteção do Estado. No meu caso, houve um estudo feito pela Polícia Militar que constatou um dos mais altos riscos do país de sofrer um atentado. Portanto, o Ministério Público solicitou e a Secretaria da Segurança Pública forneceu uma escolta armada que me acompanha o tempo todo. Mas não há previsão legal, é uma espécie de ‘acordo de cavalheiros’ assinado pelo Poder Executivo.
Justamente por isso, é um sistema frágil. Vamos dizer que o atual governador perde para um candidato da oposição. Ao começar seu mandato, em janeiro de 2027, o novo mandatário vai escolher seus comandantes da polícia, que podem simplesmente revogar a proteção a qualquer autoridade. É urgente que haja a aprovação de uma garantia legal, para dar aos agentes autonomia para investigar sem depender de favores de governos, chefes de polícia ou Judiciário.
“Não há, no Brasil, garantia de
proteção a agentes ameaçados“.
IstoÉ A falta de segurança também é dissuasiva para a desarticulação do crime organizado?
Gakiya Imagine a reação de um jovem policial, delegado ou promotor ao saber que o ex-delegado-geral da Polícia Civil do estado acabou morto sozinho, abandonado e sem proteção — ainda que não tivesse sido solicitada.
O agente que está começando sabe que as possibilidades de conquistar uma escolta são remotas, e as de mantê-la após a aposentadoria, mais ainda. Portanto, todos nós corremos o risco que culminou na morte do doutor Ruy, e assim será até que haja uma lei garantindo o acesso à proteção.
IstoÉ Qual é a dimensão do risco que o senhor corre atualmente?
Gakiya Sem a escolta, bastam um ou dos criminosos para me executar. Eu ando em veículos blindados, o efetivo que me acompanha é permanente [segue o promotor inclusive em casa] e comparável ao de um presidente da República — o que não foi solicitado por mim, mas definido conforme o nível de risco que eu corro.
Se eu decidir me aposentar, daqui a um ou dois anos, e perder isso, pode ter certeza que não duro uma semana. Os criminosos podem entrar na minha casa e executar a mim e a toda minha família, não há segurança patrimonial regular, como a de um condomínio, suficiente para inibi-los.
“Se eu me aposentar, não duro uma semana“.
IstoÉ Há perspectiva de institucionalização dessa proteção, ao senhor e a outros agentes?
Gakiya Há projetos de lei que estão tramitando para disciplinar essa proteção. Após a morte do Ruy, é imperioso que sejam votados, inclusive na Assembleia Estadual de São Paulo, onde um texto foi protocolado após o assassinato.