RESUMO

• Com três décadas de existência, PCC é a maior facção criminosa do País
• A organização já está presente na prestação de serviços públicos essenciais e na corrupção de políticos
• Isso a distancia de grupos somente criminosos, como o Comando Vermelho, e a coloca no patamar das máfias italianas
• E pode estar criando o próprio banco digital: fintechs são investigadas por serem utilizadas para lavagem de dinheiro

 

Se o Primeiro Comando da Capital (PCC) fosse uma empresa não entraria por pouco na lista das 500 maiores do País com seu estimado faturamento anual de R$ 5 bilhões. Mas em seus 30 anos de atuação, o maior grupo criminoso brasileiro começou com pretensão política, por melhor tratamento à população carcerária, fim da tortura, avançou no tráfico de drogas, estabeleceu-se no mundo empresarial com transporte clandestino e redes de postos de gasolina, até alcançar status de máfia, com estabelecimento de braços legais dentro do Estado, tanto na política quanto na oferta de serviços públicos essenciais. A operação Fim da Linha, resultado de cinco anos de investigação e que prendeu até agora dirigentes de concessionárias de ônibus da capital paulista e três vereadores, por ligações com a facção, é a ponta de iceberg da organização que já opera de maneira sofisticada na lavagem de dinheiro, ainda que tenha sido absolvida em alguns processos, atua em fintechs e se tornou a mais bem estruturada e com potencial para se institucionalizar.

A operação deflagrada pelo Ministério Público de São Paulo em duas etapas, sob o comando do promotor Lincoln Gakiya, que tenta combater o PCC há 20 anos dentro do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (GAECO), revelou a governança da facção, que preenche todas as formalidades da máfia italiana.

Fazem parte do gabarito mafioso:
o formato empresarial,
método transacional,
rígido manual de conduta,
e código de silêncio sobre delações.

Faltava apenas a infiltração nos poderes do Estado por meio da corrupção de agentes públicos. Agora, talvez não falte mais nada: suspeita-se que as empresas de ônibus Transwolff e UPBus vinham sendo usadas por anos para lavagem de dinheiro do tráfico de drogas e outros crimes.
A Transwolff opera 100 linhas na Zona Sul de São Paulo, possui 1.200 veículos e recebeu R$ 748 milhões da Prefeitura em 2023;
a UPBus, com 13 linhas e 138 ônibus na Zona Leste, faturou R$ 81 milhões. Juntas, elas atendem a 25% (750 mil passageiros por dia) na maior cidade do País.

“Mesmo tendo isolado as lideranças em presídios federais, a estrutura continua funcionando no dia a dia. As decisões estratégicas permanecem com a cúpula, mas o restante opera de maneira independente. Por isso estamos falando de organização mafiosa”, aponta o promotor Gakiya.

Transferência de Marcola (acima) para presídio federal deflagrou nova guerra; integrantes originais do PCC, como Cesinha e Geleião (abaixo) foram mortos (Crédito:Sergio Lima)

(Divulgação)

Braços políticos

Além das duas licitações no transporte, há suspeita de favorecimento em concorrências de prestação de serviço público em pelo menos outros 12 municípios paulistas. Tanto que uma semana após a ordem de prisão dos donos das empresas de transporte, três vereadores de diferentes cidades foram presos por suposto recebimento de propina em contratos de serviço de limpeza e vigilância nas respectivas Câmaras Municipais. São eles: Ricardo Queixão (PSD), de Cubatão, Flavio Batista de Souza (Podemos), de Ferraz de Vasconcelos, e Luiz Carlos Alves Dias (MDB), de Santa Isabel.

“Em todas as prefeituras havia indicativo de corrupção”, disse o promotor Yuri Fisberg do MPSP. “Isso mostra uma face do crime que está se infiltrando no poder, na política, está lavando dinheiro em atividades lícitas e ficando poderoso”, diz o governador do Estado, Tarcísio de Freitas.

Outras três empresas de transporte estão sendo investigadas por possível cartelização do setor, já que nas licitações dos lotes elas foram as únicas proponentes, o que levantou a suspeita.

Os vereadores Luiz Carlos Alves Dias (Santa Isabel), Ricardo Queixão (Cubatão) e Flávio de Souza (Ferraz de Vasconcelos) foram presos sob suspeita de ligações com facção (Crédito:Divulgação )

Na operação que prendeu vereadores, 15 ordens de detenção foram expedidas. Entre elas, a de Vagner Borges Dias, cantor de pagode conhecido como Latrell Dias. Em seu nome, dois contratos com a Prefeitura de São Paulo para limpeza de unidades de educação infantil, datados de 2020 e que somam R$ 49,6 milhões. Vagner é dono da Safe Group, que venceu duas licitações, e apontado na investigação com ligação ao PCC. Ele está foragido.

Em operação recente da Polícia Federal foi descoberta nova ramificação dos negócios do PCC como empresa, desta vez no mercado financeiro. O grupo passou a utilizar fintechs, que são menos vigiadas pelo Banco Central, para lavagem de dinheiro, em estratégia que demonstra que o passo seguinte é a criação dos próprios bancos digitais para operações do tipo. A investigação encontrou indícios também da participação da quadrilha em Fundo de Investimento em Participações, realizados por empresas privadas que não são listadas em bolsas de valores.

O início

A infiltração do PCC junto ao transporte público remete ao início da atividade da facção, nos anos 1990, quando começaram a operar peruas clandestinas que faziam trajetos entre bairros periféricos e terminais de ônibus. Usavam os veículos também para conduzir familiares de presidiários às penitenciárias que foram abertas pelo Estado, conforme a determinação inicial do grupo, que usava a sigla de três letras como Partido da Comunidade Carcerária, em sua atuação política, e Primeiro Comando da Capital para se referir ao braço armado.

O dono da Transwolff, Luiz Carlos Pacheco, o Pandora, é um ex-perueiro ligado ao PCC e foi preso durante a Fim da Linha. Já o controlador da UPBus é Silvio Luiz Ferreira, conhecido como Cebola e que atuava como gerente do tráfico internacional da facção criminosa até ser flagrado com meia tonelada de drogas no galpão onde passou a operar depois a empresa de transporte.

O MP aponta que ele possui mais de metade da frota da UPBus, que foi elogiada recentemente pelo prefeito da capital, Ricardo Nunes (MDB). Após a operação, a Prefeitura nomeou dois servidores como interventores nas empresas para garantir a continuidade na prestação do serviço.

Cebola é foragido da justiça há 10 anos. Anselmo Bicheli Santa Fausta, o “Cara Preta”, era sócio da UPBus. Ele foi degolado em dezembro de 2021. Outros dois sócios, apelidados Buiú e Jango, já foram alvos de investigação por homicídios, tráfico de drogas, sequestros e roubo a bancos.

Cronologia

O PCC começou a atuar como organização política dentro de penitenciárias em 1993, um ano após o Massacre do Carandiru, que terminou com 111 detentos mortos.

A data escolhida de fundação foi 31 de agosto, dia em que os oito fundadores organizaram partida de futebol contra os líderes que dominavam a Casa de Custódia de Taubaté e mataram dois deles.

Do interior paulista, o grupo expandiu o controle de presídios no País, já que alguns integrantes foram transferidos para presídios em Mato Grosso do Sul e no Paraná.

No decorrer dos primeiros anos, um a um os oito fundadores foram mortos. O último, Geleião, morreu de Covid em 2021.

Mas desde 2002, a liderança pertence a Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, encarcerado há 25 anos e condenado a mais de 300 anos de prisão.

A principal vantagem do Primeiro Comando da Capital foi ter nascido em território sem domínio criminoso instituído de outra facção. O sociólogo norte-americano Sudhir Venkatesh publicou artigo em 2000 que antecipa a fórmula que levou o PCC ao posto de maior e mais lucrativa facção do País. O pesquisador é autor de Gang Leader for a Day: A Rogue Sociologist Takes to the Streets (Líder de gangue por um dia: Um sociólogo desonesto vai para as ruas), sobre período infiltrado em grupo criminoso para estudo. No artigo Uma análise econômica das finanças de gangues de vendedores de drogas, Venkatesh estabelece como principal trunfo da facção a ausência de concorrentes, pois o que mais consome recursos são justamente os confrontos na guerra por domínio territorial.

A era Marcola

Em 2002, quando se tornou o cabeça da facção, Marcola conheceu um sequestrador e guerrilheiro chileno no Presídio de Presidente Prudente, Maurício Norambuena. A partir das conversas, ele descentralizou o poder do PCC e passou a operar em formato mafioso ­— ele como espécie de don (chefe de todos) e um

As principais células nessa hierarquia são:
as Sintonias dos Gravatas (advogados),
a Sintonia Geral das Ruas,
a Geral dos Outros Estados,
a Geral do Sistema,
e o Setor Financeiro.

Cada uma responde à Sintonia Final (Torre), formada por Marcola e seus homens de confiança. Assim, caso haja prisão de algum dos subchefes, o sistema segue operando no foco principal e mais rentável que ele determinou.

A liderança fora consolidada em fevereiro de 2001, quando o PCC apareceu para o Brasil em cadeia nacional. Em um domingo, dia de visita, em menos de meia hora o comando ordenou megarrebelião que tomou 29 unidades prisionais de São Paulo (25 presídios e 4 cadeias públicas), foi transmitida ao vivo pela TV, fez 10 mil reféns entre familiares dos presos e policiais e deixou 14 internos mortos e 19 agentes feridos. Os rebeldes formaram a sigla nos tetos das cadeias com lençóis e camisetas para assinarem e assumirem autoria do ataque coordenado.

Cinco anos depois, houve nova ofensiva da facção, mas desta vez fora das cadeias. Segundo pesquisadores da violência, Marcola percebeu que havia cometido um erro quando determinou a ação midiática: a paralisação de São Paulo em represália à transferência de 750 presos sem aviso prévio, em 2006.

Como o grupo controla e arregimenta integrantes em 85% das cadeias paulistas, os presídios do Estado, além de quatro de Mato Grosso e um do Paraná iniciaram rebelião simultânea a partir de um “salve” (ordem) do líder. Delegacias, postos policiais, viaturas e até ônibus sofreram ataques e 564 pessoas morreram, entre policiais e civis.

“Eles perceberam que praticaram ações que colocaram a população em forte risco. Agora o terrorismo que o PCC pratica é diferente”, diz Gakiya. Tempos depois, a Comissão de Direitos Humanos da ONU atestou que a paralisação de São Paulo se dera porque policiais teriam sequestrado um enteado de Marcola.

A exposição de membros do grupo e diálogo com políticos data dessa época.

Em agosto de 2001, no dia em que Patricia Abravanel, filha de Silvio Santos, foi sequestrada, Marcola participou de audiência pública na Câmara dos Deputados sobre combate à violência. Em Brasília, ele dialogou com o então deputado Jair Bolsonaro. Falaram sobre condenação à morte — um contra (o líder do PCC) e outro a favor (Bolsonaro) — e concordaram na pena capital para crimes de colarinho branco.

“Assim como os senhores dentro do presídio se respeitam, tendo em vista a pena de morte lá dentro, creio que, se implantássemos ela no Brasil, muita gente não estaria lá dentro. (…) No dia em que eu for Ditador deste país, vamos resolver esse problema”, teria dito o ex presidente.

Junto às exibições públicas do grupo criminoso, o modus operandi nos negócios também mudou.

Com o caminho aberto para as fronteiras pelo Centro-Oeste e Sul, o PCC mudou do varejo para o atacado na distribuição da maconha, adquirida no Paraguai, e da cocaína, vinda da Bolívia.
De São Paulo, a droga é distribuída pelo País e pelo Oceano Atlântico é despachada para África, Ásia e Europa, principalmente por Santos (SP), no Sudeste, e Ceará, no Nordeste.
O grupo possui arsenal de barcos, navios e motos aquáticas para fazer a distribuição marítima, e de pequenas aeronaves, que conseguem voar fora do alcance de radares, para as rotas aéreas, principalmente fronteiriças.
Há relatórios da presença de grande quantidade de seus cerca de 40 mil integrantes em outros países, como Colômbia e Portugal. Sinal de que a expansão de negócios e territórios segue na mira da facção.

O promotor Lincoln Gakiya é um dos combatentes do PCC, o que o obriga a viver cercado por seguranças (Crédito:Divulgação )

Lincoln Gakiya, promotor do MPSP

“Sou escoltado o tempo todo, sem possibilidade de que isso mude”

Se a Lei Seca nos EUA teve a batalha do agente Eliot Ness até a prisão do gângster Al Capone, o narcotráfico com tentáculos mafiosos do PCC tem no promotor de Justiça Lincoln Gakiya a versão brasileira do policial, homenageado no cinema em Os Intocáveis. Há 20 anos no encalço da facção, Gakiya teve três planos de execução por integrantes da gangue contidos pela polícia. Isso somente dos planejamentos conhecidos, pois sabe que viverá sob juramento do tribunal do crime até o final da vida.

Com os fatos novos revelados pela operação Fim da Linha já podemos dizer que o PCC alcançou status de grupo mafioso?
Há alguns anos, eu classificava o PCC como organização criminosa em estágio pré-mafioso. O que os separava era lavagem de capitais estruturada, já que possuíam os demais requisitos para serem classificados como mafiosos. Com a operação, chegamos à participação deles como infiltrados nos poderes de Estado e caiu o último requisito, juntamente à corrupção de agente público. O PCC atingiu esse grau, sim, das máfias italianas.

A periculosidade da facção aumenta com a ampliação de atividades?
Sim, pois eles passam a fazer parte de esquemas de licitações públicas e, uma vez ganhas, prestam serviços essenciais, como transporte urbano na maior cidade do País, com frota e deslocamento de 15 milhões de passageiros por mês. Essas duas empresas capturadas (UPBus e Transwolff) possuiam contratos milionários; juntas, receberam da Prefeitura R$ 800 milhões no ano passado.

Sobre as propriedades do PCC no comércio, como em postos de gasolina, bares e até times de futebol, por que
essa estrutura nunca foi desmantelada?
Uma coisa é ter indícios; outra coisa é ter provas cabais, como tivemos nesta operação. A Polícia Federal apurou uma rede de postos recentemente ligada ao PCC, mas não cabe investigação de todas as redes. Até porque eles já se sofisticaram e nem é algo mais que estamos indo atrás. Há investigação de fintechs sendo utilizadas pelo crime organizado para lavagem de dinheiro. Isso é muito perigoso, pois eles estão criando os próprios bancos digitais. Eu diria que o PCC subiu de patamar e se tornou máfia, então não dá mais para ficar só em postos de gasolina, né? Já estão até no mercado financeiro, e isso dificulta bastante a nossa atuação.

Tudo do PCC começa e termina nos presídios. O senhor acredita que está sendo feito um bom trabalho de fiscalização nas unidades prisionais?
Eu acredito que sim. Em São Paulo, a gente tem bloqueadores de sinais de celular funcionando de maneira eficiente, mas trabalhamos muito pouco por interceptação telefônica. A informação ainda acontece durante a visita íntima e também no atendimento jurídico, que muitas vezes não tem nada de jurídico. Na operação Ethos (2015), que coordenei, pegamos 39 advogados que eram, na verdade, pombos-correio do PCC. E a verdade é que nem todas as ordens partem do presídio. Quando transferi a cúpula do grupo (em 2019, 22 líderes foram para presídios federais), foi desmantelada essa comunicação, já que foram isolados. Mas a empresa criminosa continua, pois todos os setores estão bem organizados.

Foi por conta desse episódio que o senhor ganhou status de inimigo nº1 da organização. Vale a pena ter se tornado uma espécie de Eliot Ness?
(Ri) Vou levar como elogio. (Sério) Ando com escolta 24 horas, 7 dias da semana, sem nenhuma possibilidade de que isso seja revertido. O meu problema começou em 2004 mas se agravou com os pedidos de remoção. Aí fui realmente decretado e já me disseram que não tem perdão — falaram que posso me aposentar, posso não estar mais atuando, que serei morto. Apenas lamento ter envolvido a minha família nesse risco, pois eles não escolheram isso. Se você pergunta se vale a pena, acredito que sim, pois olha o que já conseguimos de resultados.