Indiferente ao aumento dos assassinatos por armas de fogo, que subiram 6% no primeiro semestre, Bolsonaro facilita a compra de armas, permitindo que cada cidadão possua até quatro revólveres em casa – antes eram dois. Na prática, o governo autoriza as famílias a manterem um verdadeiro arsenal em casa. Afinal, a portaria do governo permite a compra de quatro armas por pessoa, o que pode elevar o volume de unidades por residência para até dezesseis, caso a família seja composta por quatro membros. Paralelamente à essa insensatez, o presidente estimula a compra prioritária de armamentos no exterior e retira do Exército a exclusividade no controle dos equipamentos bélicos no mercado. Sob o comando do ministro da Justiça, André Mendonça, o governo estrutura uma comissão provisória formada por integrantes da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para que se possa adquirir, por meio de portaria, armas diretamente dos Estados Unidos, à revelia dos militares e contrariando a indústria nacional. Em princípio, segundo Mendonça, as armas atenderão as duas instituições diretamente subordinadas a ele. Mas, sabe-se, que a intenção do governo é ampliar esse sistema de compras no exterior para outras esferas ministeriais. As compras seriam realizadas em Washington (EUA). Hoje, as licitações dão prioridade para a aquisição de armas fabricadas no Brasil, exceto quando não há um similar no mercado nacional. O Ministério da Defesa, os militares e os produtores nacionais não estão gostando nada disso. Na prática, o que Bolsonaro faz é consolidar seu projeto ideológico de armar a população até os dentes, cultuando a política de que as pessoas devem fazer justiça com as próprias mãos, ao arrepio das leis e da civilidade.

LOBBY Eduardo Bolsonaro quer isenção de impostos para armas importadas: uma política voltada para a barbárie (Crédito:Divulgação)

Essa iniciativa imprudente e condenável foi regulamentada no último dia 21 de agosto, quando a Polícia Federal emitiu a instrução normativa IN-174, permitindo que cada brasileiro possa ter até quatro armas em seu poder. Um decreto de 2019 já contemplava essa aberração, mas a IN-174 normatiza e desburocratiza os processos para a compra dos armamentos. Entre outras coisas, a instrução permite não só a aquisição, mas também a posse e o transporte da arma fora de casa, o que é diferente do direito ao porte, que ainda requer autorização da PF. A norma também amplia o prazo de registro para 10 anos e diminui a exigência de documentos para o registro do arsenal. O professor de filosofia da PUC São Paulo, Antonio Valverde, critíca essa corrida armamentista do governo. “Há um grande mito de que as pessoas possam fazer sua autossegurança”, diz Valverde, lembrando que o filósofo Maquiavel já advertia que “é preciso de boas leis e boas armas, mas sempre em vista do bem público”. Segundo o professor da PUC, Bolsonaro faz retroceder a civilização brasileira ao século XVII.

O presidente também é mestre em se contradizer. Ao facilitar a compra de armas no exterior, o presidente enfraquece a indústria nacional que, desde a campanha eleitoral, ele dizia que incentivaria durante seu governo. A reação da indústria de armas no Brasil foi imediata. A Taurus tinha expansão industrial programada para Rio Grande do Sul, mas, com a recente decisão do governo, acaba de anunciar um novo destino para a expansão de suas atividades: Flórida (EUA). Outras empresas do setor também estudam mudarem-se do País. Em nota, a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde) criticou essa postura do Ministério da Justiça em comprar armas para a Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal nos EUA: “A Abimde e suas associadas querem crer que tal informação não seja verdadeira, pois se for confirmada, gerará uma competição absurdamente desleal em detrimento da indústria nacional e em favor das empresas estrangeiras”. Mas não é só isso. As medidas propostas pelo governo também desagradaram os militares, que sempre tiveram o controle estratégico e necessário sobre o segmento.

Caso Marielle

Essa posição brasileira de se ampliar o armamento da população e ao mesmo tempo reduzir os meios de controle oficiais por parte do Exército, têm servido para denegrir a imagem do Brasil em países mais desenvolvidos, sobretudo na Europa. Fabricantes estrangeiros, preocupados com o aumento da violência no País, sobretudo a praticada por policiais e por grupos paramilitares, especialmente os milicianos, levou a empresa alemã Heckler & Koch a anunciar a interrupção da venda de armamentos para o governo brasileiro. A submetralhadora MP5, fabricada pela empresa, foi a arma utilizada no assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes, e isso motivou a decisão da principal fabricante alemã. A arma, segundo a HK, é vendida exclusivamente para Forças Públicas de Segurança e a empresa não entende como a metralhadora acabou indo parar nas mãos dos milicianos envolvidos no assassinato da vereadora. O crime chocou a Europa e entidades ligadas aos direitos humanos pressionaram a empresa a deixar de vender suas armas ao Brasil.

Nos bastidores de Brasília essa postura é aplaudida pela bancada da bala, que tem no deputado Eduardo Bolsonaro um dos seus principais expoentes. O filho do presidente, que sustenta a política armamentista do governo no Congresso, mantém seu lobby favorável à entrada de produtores americanos de armas no mercado brasileiro. Ele tem feito reiterados apelos em favor da empresa de pistolas SIG Sauer, de origem alemã, mas cuja principal unidade fabril está instalada nos EUA. O deputado tem dito que a indústria bélica está sendo indevidamente “demonizada”, pois ela não está na origem da violência. Em maio, publicou no twitter uma mensagem incentivando o governo a isentar de impostos a compra de armas importadas. Por conta dessa insensibilidade, foi duramente criticado pelos internautas. Hoje, quando o Brasil passa dos 4 milhões de infectados e de 125 mil mortos pela Covid-19, o governo deveria focar seu esforço no combate ao vírus ao invés de gastar energias na ampliação dos instrumentos que levam ao aumento das mortes no País. No ano passado, o número de homicídios havia caído 20% e agora, somente no primeiro semestre, os assassinatos violentos voltaram a crescer, mesmo com um menor número de pessoas circulando nas ruas por conta do isolamento.