NA MIRA Bolsonaro empunha uma submetralhadora: pandemia serviu de pretexto para relaxar o controle de armamentos (Crédito:Divulgação)

Na véspera do Carnaval e menos de duas semanas após colocar dois aliados na direção da Câmara e do Senado, Jair Bolsonaro editou quatro decretos que ampliam a compra, a posse e o porte de armas. O presidente escolheu esse momento preciso, com o Congresso sob controle do Centrão e desmobilizado pelo feriado, para dar o passo mais ousado até o momento no seu projeto de armar a população. A intenção do presidente é clara e foi exposta pelo próprio mandatário em mais de uma ocasião, inclusive na famosa reunião ministerial de abril de 2020. Disse que o povo precisava se armar, pois isso seria uma “garantia” de que ninguém ousará “impor uma ditadura aqui”.

Naquele momento, Bolsonaro já usava a pandemia para defender que a população se insurgisse à força. A desculpa eram as medidas restritivas e o uso de máscaras. Em outro momento, pregou o armamentismo para o povo defender “algo mais valoroso do que nossa vida, nossa liberdade”. Tais apelos não têm nada a ver com a defesa de garantias individuais. Na crise da saúde, normas sanitárias bem mais restritivas que as brasileiras são obedecidas em todas as grandes democracias. Esse discurso é apenas um pretexto para mobilizar a base de apoio, estimulando radicais a promoverem ataques cada vez mais perigosos contra as instituições.

VITRINE Eduardo Bolsonaro é um dos principais defensores da importação de armamentos. Nos cinco primeiros meses da gestão Bolsonaro, fabricantes brasileiras e representantes da tcheca CZ e da austríaca Glock despacharam em vários ministérios (Crédito:Divulgação)
GURU ARMADO Inspirador intelectual dos bolsonaristas, o escritor Olavo de Carvalho mora nos EUA e tenta mimetizar o culto às armas de grupos conservadores (Crédito:Divulgação)

Os quatro decretos publicados em edição extra do Diário Oficial na noite do dia 12 facilitam o acesso a armamentos e afrouxam seu controle. Institucionalizam a ausência de fiscalização sobre clubes de tiros, empresas de segurança e atiradores. Um cidadão poderá adquirir seis revólveres e carregar dois consigo em qualquer lugar. Se for do chamado grupo dos CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), poderá acumular 2 mil munições (balas) sem controle do Exército. Desde o início do mandato, Bolsonaro já publicou mais de 30 alterações para facilitar esse acesso, entre decretos, portarias e normas infralegais. Em tese, esse arsenal de medidas deveria regulamentar o Estatuto do Desarmamento, de 2003, que visava coibir o porte de armas. Na prática, desrespeitam o seu objetivo e desvirtuam até o referendo que decidiu, em 2005, que as armas eram um direito do cidadão para legítima defesa. A barafunda legal se amplia. Nos próximos dias, o STF julgará a legalidade de outra resolução de Bolsonaro, que zera a alíquota de importação de armas. A medida tinha sido suspensa por liminar do ministro Edson Fachin, seguindo um pedido protocolado pelo PSB. Em junho, a Justiça Federal paulista já havia suspendido outra portaria que triplicou de 200 para 600 o limite na compra de munições para quem possui armamento registrado, uma decisão referendada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Com o afrouxamento da legislação, a população já se arma na prática. O número de armas registradas aumentou 91% em 2020.

A iniciativa de armar a população copia a prática de ditaduras. O exemplo mais próximo é a Venezuela, onde o chavismo criou as milícias cidadãs para intimidar a oposição

As investidas do presidente vão na contramão da experiência internacional e pioram o quadro da Segurança Pública no País. Em 2020, em plena pandemia e já com a liberação parcial das armas, o número de assassinatos subiu 5%, revertendo uma queda que ocorria desde 2018. No Brasil, 74% dos homicídios são cometidos por armas de fogo. É uma aberração. No mundo, essa média é de 40%. “Com esses decretos, o presidente acaba de destruir qualquer capacidade de controle das armas e munições”, afirma Ilona Szabó, cientista política, fundadora do Instituto Igarapé e especialista em Segurança Pública. Para ela, as normas atrapalham e ameaçam o trabalho da polícia, que carece de profissionalização e ostenta um baixíssimo índice de resolução de crimes. O advogado Ivan Marques, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembra que 10% de todos os homicídios registrados no mundo acontecem no Brasil, que é recordista mundial em assassinatos por armas de fogo. “A cada 1% a mais de armas em circulação, aumenta 2% o número de homicídios”, diz Natália Pollachi, do Instituto Sou da Paz. Mesmo assim, desde 2019 o governo liberou para os cidadãos comuns a posse de armamentos sofisticados, como a pistola austríaca Glock 9 mm, que custa cerca de R$ 13 mil. Quem se registra como colecionador ou atirador (CACs) já pode comprar fuzis .50, de alta precisão e uso militar, capazes de derrubar helicópteros. E integrar os CACs também ficou mais fácil com os últimos decretos. Antes, uma pessoa precisava do laudo de um psicólogo credenciado pela PF. Agora, esse documento pode ser emitido por qualquer psicólogo. Com os novos decretos, os cidadãos poderão acumular um poder de fogo superior à própria polícia. Sem o rastreamento de munições, a capacidade de investigação de crimes também será inviabilizada. Já a criminalidade será beneficiada. A experiência mundial mostra que as armas, no longo prazo, acabam migrando para o mercado ilegal. No Brasil, em mais de 50% dos delitos os criminosos usam armas que têm origem legal. Os arsenais que serão autorizados para os CACs preocupam especialmente, pois podem cair no controle de facções e milícias.

APROXIMAÇÃO Bolsonaro participa da formatura de sargentos da PM de São Paulo, em 2018 (Crédito:Zanone Fraissat)

As medidas também não preservam os principais grupos que são vítimas da violência. “Essa política atende a 30% das pessoas que em geral são de mais alta renda, majoritariamente homens. O pequeno grupo que apoia as armas não faz parte das maiores vítimas de violência, que são moradores de periferia, especialmente os jovens negros”, diz Pollachi. José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM paulista e ex-secretário Nacional de Segurança Pública, diz que enxerga “uma certa ma fé por parte do presidente”, apesar de não fazer oposição ao mandatário. “Alguém precisa de oito armas?”, questiona. Ele lembra que 72% da população nem apoia o porte de armas. “Atiradores poderão ter 60 armas, não sei para quê. Só se for pra montar uma milícia”, diz. O Exército, quando fizer a fiscalização do arsenal dos CACs, precisará a partir de agora avisar com 24 horas de antecedência.

PROTESTO Para o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, o presidente exacerbou sua competência (Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Projeto autoritário

Os decretos não têm justificativa na segurança pública ou defesa pessoal, já a motivação política é clara. A iniciativa de armar a população segue um projeto autoritário e copia a prática de ditaduras. O exemplo mais próximo é a Venezuela, onde foram criadas as “milícias cidadãs”. Esses grupos paramilitares armados foram encarregados de intimidar opositores e garantir a segurança do regime. Mussolini declarava que “só um povo armado é forte e livre”.

A ideologia fascista inspirou o chavismo e agora alimenta seu movimento homólogo de direita, o bolsonarismo. Apesar de os radicais terem sido contidos até o momento pelo STF, com os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, o presidente continua a pregar contra a liberdade de expressão. Nos dias seguintes à investida armamentista, voltou a atacar a imprensa. Em uma live transmitida pelo filho Eduardo, o presidente disse que “o certo é tirar de circulação” os grandes veículos pois são “fábricas de fake news”. E emendou: “Não vou fazer isso porque eu sou um democrata”. Mas, dias antes, não escondeu sua convicção autocrata ao fazer a declaração mais explícita contra a ordem constitucional: “Quem decide se um povo vai viver numa democracia ou numa ditadura são as suas Forças Armadas”, disse. Como se vê nas manifestações cada vez mais agressivas dos apoiadores do presidente, que pregam a violência e adoram se exibir com fuzis e pistolas, o risco autoritário é concreto. A própria democracia americana foi colocada à prova por manifestantes que invadiram à força o Congresso americano para interromper o processo de transição pacífica de poder. A ação foi incitada por Donald Trump, que é a grande referência do presidente brasileiro. Outra estratégia golpista do americano já é imitada por Bolsonaro. Por ter consciência de que pode fracassar na sua tentativa de reeleição, ele tenta deslegitimar as eleições de 2022 alegando risco de fraude com as urnas eletrônicas — mesmo que nunca tenha sido registrado um só caso de desvio no processo digital. Nos EUA, uma das prioridades de Joe Biden é aumentar a fiscalização sobre a compra de armas e limitar o poder ofensivo dos equipamentos vendidos, para evitar a repetição dos massacres em escolas — um fenômeno que, infelizmente, já aconteceu no Brasil.

Militarizar a sociedade

A ofensiva armamentista faz parte da estratégica adotada pelo presidente de militarizar a sociedade e politizar os quartéis. Bolsonaro, que já apoiou motins de policiais, pretende tirar dos governadores o controle sobre as PMs. Aparelhou o executivo com fardados e tem investido ativamente para cativar oficiais de baixa patente em todo o País, nas Forças Armadas e nas Polícias Militares. “Permitir o acúmulo de munições e armas sofisticadas sem registro do Exército é inimaginável em um Estado de Direito”, diz Szabó. “O Exército faz o controle de vidros blindados de carros, mas a compra de munição e armas está liberada. Num País violento como o Brasil, qualquer governo sensato recolheria todas as armas”, argumenta José Vicente.

A iniciativa de Bolsonaro irritou partidos e congressistas. O Cidadania alega que o ato do presidente usurpa poderes do Congresso de legislar. A senadora Eliziane Gama apresentou quatro projetos que sustam os efeitos das medidas. “Em dois anos, o número de armas ilegais em mãos de pessoas saltou de pouco mais de 600 mil para perto de 1,2 milhão. É um desvario completo”, critica. Como os decretos presidenciais não precisam ser aprovados para entrar em vigor e passam a valer 60 dias após sua publicação, ao Congresso restará aprovar projetos que sustem seus efeitos. A principal manifestação contrária veio do vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL), que é do Centrão. Para ele, Bolsonaro exacerbou sua competência. “Eu discordo desse decreto, no conteúdo, na forma e na oportunidade. Não é armando as pessoas que vamos fazer política de Segurança Pública. Alguns aspectos do decreto exorbitam o poder regulamentar. E o momento é inadequado, com 245 mil mortos, 14 milhões de desempregados e mais de 700 mil micro e pequenas empresas fechadas devido à pandemia. Tudo que não é importante é discutir armas agora”, afirmou. Mas Arthur Lira, o presidente da Câmara, já apoiou a iniciativa. “Ele não invadiu competência. Modificou decretos já existentes. É prerrogativa do presidente. Pode ter superlativado na questão das duas armas para porte, mas isso pode ser corrigido”, disse. Com essa atitude, o líder do Centrão já começou a retribuir o apoio do presidente à sua eleição no último dia 1º. A bancada da bala, naturalmente, vibrou. Já a bancada evangélica resiste. Seus representantes argumentam que o armamentismo está em contradição com valores religiosos. Especialistas também apontam a ilegalidade das normas. “O governo não só extrapola entrando na seara do Congresso como também, em algumas partes, viola acordos internacionais e tratados assumidos no passado, como o protocolo da ONU sobre armas de fogo “, diz Marques.

“Com esses decretos, o presidente Jair Bolsonaro acaba de destruir qualquer capacidade de controle das armas e munições” Ilona Szabó, especialista em Segurança Pública e fundadora do Instituto Igarapé (Crédito: Eduardo Knapp)

A edição dos decretos já chegou ao STF, onde o PSB pediu sua suspensão. O PSOL vai entrar com uma ação de inconstitucionalidade e o PCdoB também vai recorrer. Alheio à repercussão, o clã presidencial estava exultante com a repercussão favorável nos grupos bolsonaristas. Acompanhando o pai no feriado do Carnaval no litoral de Santa Catarina, Eduardo Bolsonaro comemorou. Perguntou a apoiadores se estavam “felizes” com os decretos. Questionado por populares, Bolsonaro disse que “o povo está vibrando” (no Twitter, no entanto, bloqueou Ilona Szabó após um tuite em que a especialista criticava os decretos). A euforia também tem uma razão política. A repercussão do tema contribuiu para desviar a atenção da gestão irresponsável na pandemia. Coube à Frente Nacional de Prefeitos cobrar o óbvio. “Não é momento para discutir e avançar com a pauta de costumes ou regramento sobre aquisição de armas e munições.” Para a entidade, isso é um desrespeito com os mortos na pandemia e uma grave desconsideração com a população. A indignação não é só dos municípios. Agora, cabe ao Congresso e ao STF barrar a escalada armamentista para a defesa da própria democracia. Até o momento, muitos em Brasília acham que é melhor relevar as “loucuras” do presidente. Fazem um cálculo político perigoso. Minimizam seus atos e esperam que ele perca popularidade até as próximas eleições. Mas, pouco a pouco, Bolsonaro avança em sua agenda autoritária. Essa “insanidade” tem método e já provou ser bem-sucedida. Loucura é deixar que o mandatário complete seu projeto ditatorial.