A paraibana Raquel Sheherazade é mulher arretada. Ficou no comando da bancada do jornal do SBT por quase 10 anos. A crise política e econômica do governo da presidente Dilma Rousseff deu grande notoriedade à âncora. Ela era uma voz contundente que apresentava sem meias palavras a sua interpretação. A repercussão do seu trabalho na TV rendeu o prêmio Troféu Imprensa, em 2015. No entanto, dentro da emissora travou uma queda de braços com Silvio Santos. Mesmo sendo publicamente constrangida por incluir opiniões pessoais durante a apresentação do telejornal, a jornalista não se curvou a determinação do patrão e viu o empresário Luciano Hang, proprietário da rede de lojas Havan, pedir sua demissão. Sobre a relação com SBT, Rachel diz que por questão ética e contratual não fala, mas também não nega que houve interferência do governo federal para que ela não renovasse seu contrato. Conta nas entrelinhas como foi sua saída do SBT e fala o que pensa sobre a política brasileira. Nega ser bolsonarista, classificando-se como “liberal conservadora”. Ela entende que há um pensamento binário na política que elimina a diversidade de opinões. Aponta o “gabinete do ódio” como a origem dos ataques mais perversos que recebeu recentemente. Leia em ISTOÉ mais sobre essa entrevista exclusiva.

Você se notabilizou na TV como uma apresentadora que além da notícia dá suas opiniões e faz críticas. Falta esse tipo de profissional na TV?
Sim, ainda falta opinião, senso crítico, análise e, o mais importante, liberdade nas redações. Âncoras são reduzidos a meros leitores de teleprompter, repórteres não emplacam matérias críticas aos poderosos de plantão. E até os comentaristas sofrem censura e represálias. O jornalismo deveria ser o atestado de idoneidade de uma empresa. Nunca uma moeda de troca com governantes. Quando uma empresa de comunicação põe seu jornalismo de joelhos, a serviço do Poder, ela mostra claramente que não tem compromisso e respeito com o público. Como dizem os evangelhos: não é possível servir a dois senhores ao mesmo tempo.

Ainda é mais difícil para a sociedade aceitar a opinião de uma mulher?
Ainda vivemos num país de profundas raízes no machismo e no patriarcado, onde o lugar da mulher é na cozinha, cuidando dos filhos e do lar. Há muito pouco tempo atrás não tínhamos sequer um lugar de fala. O voto feminino é um advento recente. Assim como a entrada da mulher no mercado de trabalho. Apesar de representarmos a maioria do eleitorado, somos minoria no Executivo e nas casas legislativas. As leis que nos regem ainda são feitas por homens e raramente levam em consideração as necessidades das mulheres. É triste constatar que, apesar dos avanços, estamos longe da paridade entre os gêneros. Somos vistas, ainda, como cidadãs de segunda classe.

Sua postura crítica foi altamente destacada durante o governo da presidente Dilma Rousseff. Você acha que contribuiu para o impeachment dela?
O impeachment não é o resultado da opinião de um ou de outro grupo de jornalistas. Ele não representa, necessariamente, nem mesmo a vontade do povo. O impeachment é, primeiramente, consequência de algum crime cometido durante o mandato. Mas é o jogo político que define o impeachment. Dilma Rousseff caiu por dois motivos: cometeu crime, segundo o Judiciário, e não teve suporte político para se manter no poder.

Em algum momento você disse ser bolsonarista?
Jamais. Tenho a consciência muito tranquila de ter alertado meus ouvintes e seguidores sobre o perigo que seria a eleição de mais um populista. Fui muito perseguida antes, durante e após a campanha de 2018 exatamente por não compactuar com o bolsonarismo ou qualquer outra ideologia que se assemelhe ao fascismo.

Muita gente pensou que você se posicionava favorável ao presidente Bolsonaro, por conta da contundente crítica ao PT?
A maioria das pessoas tem um pensamento binário. Vêm o mundo, as ideias e as pessoas como a divisão entre um lado e seu oposto, como o bem e o mal. O fato de eu ter criticado o PT não me faz uma apoiadora de Bolsonaro, que, aliás, enquanto deputado, de forma fisiológica, votou inúmeras vezes apoiando os governos Lula e Dilma. Sou uma liberal conservadora. E acima de tudo sou uma jornalista. Não cabe a mim apoiar publicamente nenhum partido ou político.

Depois das suas críticas ao presidente Bolsonaro, o público mudou a relação contigo?
De uma parte do público que se identificava com o bolsonarismo sim. Passei de musa da direita à traidora esquerdopata e outros adjetivos que não vale a pena citar. Eu não os culpo. Muitos foram ludibriados pelo seu político de estimação e suas fake news. E, ainda por cima, como esperar que esse público entenda a real concepção de esquerda, direita, liberalismo, fascismo, comunismo. Falta cultura política no Brasil.

O empresário Luciano Hang pediu a sua demissão?
Sim. No ano passado, o empresário manifestou no Twitter sua satisfação e alegria com relação à demissão de colegas meus do SBT. O senhor Luciano Hang chamou-os de comunistas, mesmo desconhecendo qual a inclinação política e ideológica dos jornalistas desligados da emissora. E, por fim, disse, no Twitter: “Está faltando demitir a
Sheherazade”. Sendo ele um empresário que fez campanha para o presidente, uma espécie de garoto propaganda
do bolsonarismo e ainda por cima um dos maiores patrocinadores do SBT, sim, ficou claro que ele pediu a minha cabeça à emissora.

Qual é o maior problema do País hoje?
Nosso maior problema é, e sempre foi, a educação. Se ela é falha ou é desigual, compromete e condena o futuro de um povo inteiro. Nossas mazelas não são fruto do acaso, culpa dos portugueses, da nossa colonização. Nossas mazelas são resultado de séculos de deseducação.

Você enxerga alguém que tenha surgido com boas soluções para o Brasil hoje?
Não sou pessimista. Acredito que há boas ideias e boas intenções na política. É só por isso que o País não entrou em colapso ainda.

As denúncias que surgem contra a família Bolsonaro são graves. Você acha que “vão acabar em pizza”?
Não acredito que o presidente e seus filhos sejam punidos por seus crimes neste mandato. Seria um ato de muita coragem enfrentar quem está com a caneta na mão. E, infelizmente, tem sobrado covardia no Brasil. Falo não só dos nossos representantes no Congresso, mas também da Polícia, do Ministério Público, da Imprensa e do Judiciário.

A questão dos direitos humanos é um debate sempre quente no País. Qual seu posicionamento?
Os direitos humanos são uma pauta supra partidária. Essa pauta está acima dos interesses mesquinhos de partidos e políticos, de grupelhos ideológicos. É uma busca nobre, incessante, mundial. Acho que sem um organismo internacional, independente e plural, que vigie, denuncie e puna abusos aos direitos humanos, voltaremos à barbárie. O racismo, a intolerância com os imigrantes, o machismo, a homofobia, a violência contra grupos minoritários ou hipossuficientes precisam ser combatidos e banidos de vez para que possamos evoluir na escala da civilização.

Nesse momento de pandemia há quem negue a ciência. O que você pensa a respeito?
O anticientificismo é uma marca do atual governo. A negação dos dados do INPE com relação às queimadas, a desmoralização da imprensa, a descrença no potencial destruidor do vírus e da eficiência das vacinas têm um fator em comum: negar o óbvio e criar uma realidade paralela sempre favorável ao bolsonarismo. Lamento o crescimento desse tipo de pensamento retrógrado e reacionário. O nazismo também se valeu da mentira institucional para criar um inimigo do povo alemão e dar início a uma guerra inútil, que dizimou milhões de pessoas. Precisamos olhar para trás e conhecer a história e seus os mitos políticos para não repetir as mesmas tragédias.

O Brasil deu alguns passos atrás na questão da fome, meio ambiente e desemprego. É uma política de governo não se importar com esses setores?
Não me parece que haja qualquer política de governo no Bolsonarismo. O presidente se deixa guiar por hordas de reacionários dentro e fora das redes sociais. É o porta-voz desses extremistas. Infelizmente, o atual governo se resume a um bando de ressentidos que chegou ao poder à custa de fake news, cujo único propósito é se opor ao politicamente correto. E o presidente Bolsonaro não passa de um triste plágio de Donald Trump, no que o americano tem de pior.

A intolerância parece aumentar. Você sofreu algum tipo de ataque pessoal?
Assim como todos os críticos do atual governo, eu também sofri ataques. Estamos lidando com pessoas que não respeitam o contraditório e a crítica racional. A maioria dos ataques acontece por meio das redes sociais, geralmente operados por robôs, ou pessoas que atuam no já conhecido e denunciado “gabinete do ódio”. A ironia é que esses são os mesmos grupos que denunciavam o linchamento virtual e o assassinato de reputações dos governos anteriores. Agem da mesma forma, ou melhor, com um requinte de crueldade nunca antes visto.

A imprensa tradicional ainda é a melhor forma de proteção contra as fake news?
Sim, desde que a imprensa aja com independência e apartidarismo. Desde que ela se diferencie dos blogs governistas e pratique o verdadeiro jornalismo, que sempre teve uma postura de enfrentamento ao poder constituído e não de apoio e alinhamento.

Você tem alguma proposta de voltar a TV. Pode nos contar onde e como será o novo projeto?
Recebi uma proposta para voltar à televisão, mas estamos conversando ainda. Há dois projetos nesse sentido. Mas depois da surpresa de ter sido avisada por e-mail que não preciso cumprir o meu contrato, recebi a grata surpresa de uma contratação pelo portal Metrópoles. Nem deu tempo de ficar triste. Estou muito feliz pois voltarei para uma funçåo que sempre amei: entrevistar.