O avanço da covid-19 nas cidades brasileiras em 2021, ano em que os indicadores da pandemia bateram recordes no País, levou diversas famílias a recorrer a serviços de hospitais privados em momentos de urgência, na expectativa de conseguir acesso a leitos e assistência que não encontraram na rede pública. Agora, diante de contas com cifras que chegam a centenas de milhares de reais, se mobilizam para honrar as dívidas que se acumularam.

Relatos de dívidas com instituições particulares de saúde se multiplicam nas redes sociais. São famílias que buscam ajuda de conhecidos e desconhecidos para pagar contas de hospital.

Em alguns casos, os pacientes não sobreviveram e o luto se mistura à batalha para reunir a quantia devida. A mobilização também envolve rifas e vaquinhas online e gente que teve de vender veículos e até a própria casa.

Segundo entidades de hospitais privados e especialistas, os custos para internar pacientes, já elevados, cresceram ao longo do ano, por causa da alta no preço dos remédios, como o kit intubação. Nessas situações, apontam, há ainda risco grande de inadimplência.

Enquanto a família de Gustavo Ferreira, de 22 anos, enfrenta um processo doloroso após a morte prematura do jovem, também deve enfrentar outra adversidade: uma dívida hospitalar que chega a R$ 219 mil. “A gente foi surpreendido com a conta do hospital”, afirma Victor Vasconcelos, primo de Gustavo.

A primeira conta lançada pelo Hospital Santa Juliana, em Rio Branco, foi de R$ 104.795,55 e somente o gasto com medicamentos ultrapassa R$ 60 mil. Imersos nessa situação, o processo de luto foi negado aos pais de Gustavo.

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“Quis dar aos meus tios o direito de sofrer”, diz Victor, que iniciou uma campanha online para auxiliar o pagamento da dívida. Por se tratarem de contas altas, mesmo após significativa mobilização nas redes sociais, a vaquinha ainda não alcançou um terço do valor total necessário.

Transferência

Logo quando a família da educadora Eliete Maia, de 42 anos, soube que a situação dela era grave – 90% do pulmão comprometido -, cogitou-se transferi-la do hospital público em que estava internada na capital acriana para o Santa Juliana, o mesmo em que Gustavo ficou hospitalizado. A possibilidade foi descartada rapidamente após indicações de médicos locais que orientaram mover a paciente para um hospital de São Paulo, onde Eliete teria mais assistência.

Entretanto, no auge da pandemia, a luta pela vida requer gastos elevados. Com um depósito inicial de R$ 50 mil, Eliete foi transferida para o Hospital Incor, na capital paulista, no dia 11 de junho. Segundo a sobrinha dela, Patrícia Andrade, a diária do centro médico chega a R$ 10 mil e os honorários médicos alcançam R$ 2 mil.

Para pagar toda a conta médica, Patrícia também promoveu uma vaquinha online para arrecadar recursos e a família já recorreu a empréstimos, vendeu um carro e colocou a casa à venda. “A vida dela é tudo”, afirma a sobrinha.

Sobreviventes que receberam alta do hospital também foram surpreendidos com uma dívida alta. É o caso do professor Alexandre Guidice, de 35 anos. Mesmo com plano de saúde, após dez dias de internação no Hospital Primavera, em Aracaju, o professor foi recebido com uma fatura de mais de R$ 100 mil. “São valores que a gente não sabe de onde tiram”, afirma a mulher, Mariana Moura, de 31 anos.

Ela relata que, enquanto o marido estava intubado, a conta foi enviada via aplicativo de mensagens sem detalhamento de quais serviços estavam incluídos na cobrança. O valor é referente aos três dias em que o plano não cobriu as despesas da internação. Sem condições para quitar a dívida, Mariana agiu de imediato e, assim como boa parte dos endividados, lançou uma campanha virtual.

Com as doações, conseguiu pagar 40% da conta, mas o restante continua em negociação. Apesar da preocupação com a dívida, hoje ela tenta se concentrar na recuperação de Guidice, que ainda necessita de fisioterapia, fonoaudiologia e cuidados extras com uma lesão na perna que adquiriu durante a internação.

Os pais internados e uma conta difícil de ser ignorada: esse também foi o cenário enfrentado pela jornalista Narjara Costa, de 37 anos. Para internar a mãe Edileusa, de 61 anos, no hospital privado São Camilo em Macapá, vendeu seu carro e deu entrada de R$ 15 mil.

Pouco tempo depois, o pai Ronaldo, de 64 anos, também precisou ser internado por causa da covid-19. Os custos das permanências na UTI alcançaram R$ 30 mil, por dia. “Muitas pessoas falaram que eu era corajosa por fazer isso, mas o que você não faz por quem você ama?”

Edileusa recebeu alta do hospital, mas Ronaldo não sobreviveu. Em meio à dor do luto, as dívidas não param de se acumular. Para obter recursos, Narjara recorreu a rifas e vaquinhas nas redes sociais. Da conta de R$ 318 mil, ainda restam R$ 227 mil.


A casa de Edileusa foi colocada à venda, mas o processo de negociação da dívida está parado, segundo a família, por causa de entraves com o Hospital São Camilo. “Eles pressionam muito e não negociam. E quando negociam é muito difícil de pagar. Ali você tem de ter dinheiro”, afirma Narjara.

Pressão da pandemia

Cobranças de valores altos não envolvem, necessariamente, preços abusivos ou irregulares, mas ilustram a pressão causada pela crise sanitária. A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) divulgou neste mês comunicado no qual detalha os custos das internações privadas de covid-19.

Segundo a organização, em abril, o custo médio por paciente por mês em UTI estava em R$ 100,6 mil, aumento de 27% em relação ao mês de janeiro, variação que também se relaciona com a alta de preço dos medicamentos do chamado kit intubação.

“Se envolver intubação e ventilação mecânica, os materiais e medicamentos utilizados são extremamente caros. Além disso, numa UTI a equipe assistencial fica ao lado do paciente 24 horas”, diz Walter Cintra, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV.

Isso pode explicar as altas faturas recebidas no caso de pessoas que precisaram recorrer ao sistema privado de saúde. Esses eventos catastróficos, como são chamadas as internações de pacientes em estado grave, também apresentam um enorme risco de inadimplência, uma vez que muitos pacientes são internados em um ato de desespero da família.

Como saída para evitar dívidas de internações, conforme Cintra, os hospitais particulares costumam tentar transferência do paciente para um hospital público. “O que, no presente caso, é muito difícil de conseguir, uma vez que o paciente buscou o serviço privado exatamente por não conseguir vaga no SUS.”

Embora cada história apresente algum problema particular, a realidade que enfrentam é um reflexo estrutural do esgotamento nos hospitais públicos brasileiros. “Há uma demanda de assistência superior à capacidade de atendimento”, afirma Cintra.

Enquanto o Brasil já registra mais de 500 mil mortos pela covid-19, reverter essa situação pode ser uma tarefa árdua e que deve se estender a longo prazo.

Associação

Procurada pela reportagem, a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), em nota, respondeu que a legislação impossibilita o pagamento antecipado em casos de emergência. Além disso, os acordos são permitidos entre paciente, hospital e seguradora.

Sobre situações semelhantes às que foram apresentadas nesta reportagem, a Anahp afirma que “não pode nem deve participar ou conhecer detalhes de operações comerciais ou financeiras de seus associados”.


Até o domingo, nenhum dos hospitais mencionados respondeu aos questionamentos enviados pelo jornal O Estado de S. Paulo.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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