DEMISSÃO O ex-secretário especial de Cultura Henrique Pires deixou a pasta por causa da censura (Crédito:Divulgação)

Se depender das intenções do presidente Jair Bolsonaro, a produção audiovisual brasileira, que já vinha capengando, precisará invocar uma ideia mais astuta do que uma câmera na mão e uma ideia na cabeça para não sucumbir. Desde o início do ano, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) vem sendo desmontada pelo governo. Na última semana, o diretor-presidente interino da agência, Alex Braga Muniz, iniciou uma demissão em massa. Exonerou todos os superintendentes, o secretário-executivo, o chefe do escritório de São Paulo e o ouvidor-geral. Seu antecessor, Christian de Castro, escolhido em janeiro, foi afastado do cargo por decisão judicial baseada em uma ação do Ministério Público Federal que o acusa de repassar informações sigilosas a um ex-sócio sem ligações com a agência, além de prevaricação e associação criminosa. O esvaziamento total da Ancine viria com a transferência do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), atualmente sob seu controle, para a Secretaria Especial de Cultura, o que vem sendo estudado pelo governo. O fundo teria R$ 724 milhões para gastar neste ano, mas nenhum tostão ainda foi liberado. Dezenas de projetos de filmes e séries estão parados ou comprometidos.

DIVERSIDADE Filmes que tratam de questões de gênero, como “Afronte”, estão vetadas por razões morais (Crédito:Divulgação)

Temática LGBTQI+

Por meio do corte de recursos, o governo quer interferir no conteúdo do que é produzido. Para rebaixar mais a Ancine, Bolsonaro anuncia uma censura moral e diz que na sua gestão a agência só investirá em filmes que defendam a família e os bons costumes. O presidente quer controlar o conteúdo das produções cinematográficas e impor limites à criação por meio do que ele chama de “filtros”. Começou com o descrédito dado ao longa que retrata a vida de Bruna Surfistinha, de 2011, passou pela derrubada de filmes com temática LGBT e agora, não menos surpreendente, culminou com as críticas ao filme “Vou nadar até você”, protagonizado pela global Bruna Marquezine – imaginem: a atriz aparece “nua e fumando maconha”.

Aquilo que o governo classifica de filtro, o ex-secretário especial de Cultura Henrique Pires, que se demitiu em agosto, chamou de censura. A gota d’água para Pires se demitir foi uma portaria do governo que suspendeu o edital da Ancine de chamamento de projetos para emissoras públicas de televisão que contemplava séries com temática LGBTQ+. A justificativa foi de reorganização do comitê decisório de investimentos do FSA, da onde saem os recursos. Numa primeira seleção, em um universo de seiscentas obras, apenas dezenove envolviam a temática “diversidade de gênero” e “sexualidade”, criticadas pelo presidente. Era o caso do curta “Afronte”, dirigida por Marcos Mesquita e Bruno Victor. O dirigismo ríspido, sem nenhum verniz, tem consequências desastrosas no que tange à produção cultural do País. Bolsonaro chegou a sugerir a extinção da Ancine, em explícito desacato à Constituição Federal, berço da ampla liberdade artística. Para ele, o presidente ideal da agência “deveria ser um evangélico que conseguisse recitar de cor 200 versículos bíblicos, que tivesse os joelhos machucados de tanto ajoelhar e que andasse com a Bíblia debaixo do braço”.

A cartilha da boa governança reza que, com o dinheiro privado, cada um pode fazer o que bem entender. Com financiamento público mediante edital, entretanto, é diferente: a pluralidade e a legislação são regras. “Então quando o ministro fala que é importante ter filtros, eu digo que é importante atentar-se à legislação”, diz o ex-secretário especial de Cultura. A Ancine, criada sob o guarda-chuva da não ingerência política, ajudou, no ano passado, a lançar quase duzentas produções nacionais – o número mais expressivo desde a chamada “retomada” na década de 1990 (nem todas tão destacadas como o filme “Marighella”, de Wagner Moura). Agora, pelo jeito, o governo não deve mover uma palha para ajudar o cinema. E o volume de produções tende a cair vertiginosamente.