As eleições legislativas de Buenos Aires, que ocorreram no último domingo, 7, deram novos contornos à política argentina. Na mais populosa e influente província do país, os resultados declararam uma derrota do partido do presidente Javier Milei e são encarados como termômetro para a disputa de outubro – que decidirá a composição do Congresso Nacional.
O partido Fuerza Patria, dos peronistas, alcançou mais de 47% dos votos das urnas e deixou a legenda ultraliberal de Milei – La Libertad Avanza – com pouco mais de 30%. Apesar da vitória já ser esperada, grande parte dos analistas mostraram surpresa ao ver a larga vantagem assinada pela oposição: os progressistas ganharam em seis dos oito distritos eleitorais e 99 dos 135 municípios.
Mais que um enfraquecimento da gestão federal, a corrida em Buenos Aires serviu para mostrar os desdobramentos internos de uma esquerda, até então, desorganizada. Sob a liderança do governador de Buenos Aires Axel Kicillof, os argentinos indicaram que não pretendem ficar limitados às antigas figuras do Kirchnerismo.
- Kirchnerismo: principal vertente de esquerda dentro do peronismo, o amplo e multifacetado movimento político argentino. Carrega o sobrenome de Néstor e Cristina Kirchner, ambos ex-presidentes conhecidos por políticas estatais, angariando forte tradição progressista.
Entenda o que são as eleições de província na Argentina
Segundo simplifica o professor de Relações Internacionais na PUC-SP, Tomaz Paoliello, as eleições de domingo, em Buenos Aires, são “como as eleições estaduais do Brasil” – que definem a composição do legislativo da província local. Nesta ocasião, os eleitores votaram em deputados, senadores e concejales (equivalente a vereadores).
Paoliello lembra, porém, um ponto importante: a cidade de Buenos Aires (capital) não faz parte da província de Buenos Aires, sendo a capital da Argentina uma jurisdição autônoma.
Apesar de uma disputa local, a corrida na província era esperada como prévia da votação nacional do próximo mês. Em 26 de outubro de 2025, ocorrerão as eleições de meio de mandato, quando a população de todo o país escolhe os parlamentares integrantes do Congresso – ou seja, o Poder Legislativo argentino.
Atualmente, Milei assina minoria no Congresso Nacional e tem que governar contornando divergências entre os Poderes, muitas vezes à base de decretos. Desse modo, a corrida de outubro é tratada com suma importância – de um lado, o ultraliberal tenta angariar mais cadeiras no parlamento, ao passo que a oposição se organiza para evitar rachaduras internas e manter maioria legislativa.
Para o professor de Relações Internacionais da ESPM Leonardo Trevisan, Milei encontra uma conjuntura muito distinta da que se desenhou em 2023, ano em que foi eleito. Ele aponta que a contagem dos votos expõe “uma resistência organizada ao governo”.
“Esse enfraquecimento já se reflete no Congresso: na semana passada, pela primeira vez, um veto presidencial foi derrubado. Milei não tem mais força para impor sua agenda legislativa”.
Os catalisadores da vitória peronista
A imprensa argentina atribuiu o resultado surpreendente positivo a um acúmulo de fatores. Além do trabalho dos prefeitos forte campanha de Axel Kicillof em nome de candidatos aliados, o recente escândalo do governo Milei também foi um presente à oposição.
No final de agosto, a Argentina acompanhou a divulgação de áudios que relacionaram Karina Milei, irmã do presidente, a uma suposta cobrança de subornos na compra de medicamentos destinados a pessoas com deficiência. O começo de uma investigação contra corrupção no círculo interno do liberal foi o último fator para carimbar a vitória peronista do domingo.
“Claro que um escândalo de corrupção que envolve uma das figuras centrais do governo Milei impacta esse bloco da direita. Especialmente dessa nova direita, que chega com um discurso muito forte de anticorrupção”, explica Paoliello.
Segundo relatos da mídia local, houve ainda uma alta incidência de pessoas deficientes indo às urnas. Em resposta às políticas de saúde capacitistas de Milei e ao escândalo de sua irmã, “havia pessoas em cadeiras de rodas, usando bengalas e pais acompanhando seus filhos com deficiência de desenvolvimento”, escreveu o jornal Clarín.
Por que a data das eleições é importante: esquerda sem Kirchner?
A data da eleição em Buenos Aires é fator significativo para entender os imbróglios internos do peronismo. Com Cristina Kirchner – uma das principais figuras da esquerda argentina – em prisão domiciliar e impedida de concorrer desde o meio do ano, o caminho parecia aberto para novas lideranças fora do eixo kirchnerista. Foi então que o governador Axel Kicillof se projetou como possível herdeiro do eleitorado progressista.
Apegados ao legado familiar e convictos de que seria uma derrota eleitoral, Cristina e o filho Máximo foram contrários à vontade de Kicillof sobre realizar as eleições da província de Buenos Aires em uma data distinta às eleições legislativas gerais.
No contexto argentino, as eleições para legisladores provinciais e prefeitos podem ocorrer na mesma data das eleições nacionais (para presidente, vice-presidente, deputados e senadores nacionais), no cenário de “eleições unificadas”. A outra possibilidade do governo das províncias é separar as datas e permitir votações mais independentes – chamadas “eleições desdobladas”.
Kicillof optou pelas eleições desdobladas e emplacou resultado importante para sua consolidação como futuro candidato à disputa presidencial de 2027. Segundo Paoliello, Kicillof possui congruências com a tradição kirchnerista, o que cria uma situação de parceria e, ao mesmo tempo, de confronto por certa independência.
“Kicillof fez parte do governo Kirchner, é próximo ao kirchnerismo em várias posições, mas surge como um nome independente. Então, eventualmente ele pode enfrentar uma oposição interna do kirchnerismo – da Cristina, particularmente”, explica o professor Paoliello.
Portais argentinos também ressaltam que, apesar de promissor, a liderança de Kicillof ainda não parece completamente aderida pelo clã Kirchner.
“Isso [vitória peronista] confirma na Argentina que existe outro caminho, e hoje começamos a percorrê-lo”, declarou Kicillof no domingo, expressando intenção de concorrer em 2027.
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