Para muitos, a imagem do papa Francisco solitário, celebrando na Praça São Pedro vazia, naquela tarde chuvosa de 27 de março, será a cena histórica mais pungente da pandemia que parou o mundo em 2020. Para o vaticanista britânico Austen Ivereigh, ali estava também o marco zero de um livro que ele escreveria a quatro mãos com o próprio sumo pontífice.

Na mesma época, Francisco havia concedido uma entrevista a Ivereigh e fora anunciada a criação de uma comissão pós-covid, para ajudar a “preparar o futuro”, conforme suas palavras. “Todas essas coisas me mostraram que o papa estava vivendo este momento muito profundamente, que ele via a pandemia e todas as crises de que ela faz parte como um momento limite para a humanidade, no qual era necessário fazer escolhas vitais, das quais nosso futuro dependeria.”

Experiência para ler o assunto não lhe faltava. Aos 54 anos, Ivereigh é reconhecido como o melhor biógrafo de Francisco, autor de The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope e Wounded Shepherd: Pope Francis and His Struggle to Convert the Catholic Church. O vaticanista, então, decidiu convidar o papa para escrever um livro a quatro mãos. “A humanidade precisava ouvi-lo em um nível mais profundo que uma entrevista ou uma homilia”, recorda.

Oito meses depois, em 10 de dezembro, saiu Vamos Sonhar Juntos: O Caminho para Um Futuro Melhor. No Brasil, a publicação é da Editora Intrínseca. “Sabia que seria um trabalho muito difícil e com um prazo impossível. Mas também que seria o maior privilégio da minha vida. E foi”, disse ao Estadão

O senhor é reconhecido como o melhor biógrafo do papa. De onde vem tal proximidade?

Até este ano, eu o tinha encontrado apenas algumas vezes. Para o livro tivemos muito contato por e-mail e por telefone, porque estávamos ambos presos – ele em Roma, eu na Inglaterra. Fiquei feliz por vê-lo em Roma em setembro e entregar as provas do livro. Houve um momento em que ele começou a usar o ‘vos’ comigo em vez do ‘usted’ (indicando informalidade). Diria que é um relacionamento semelhante ao de um professor e seu discípulo.

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No livro, o papa Francisco procura fazer a diferença entre ideologia e consciência – e apresenta-se como alguém que adquiriu consciência ecológica. Em que contexto negar ideologias parece ser importante para Francisco?

Sim, ele é um papa ecológico, no sentido de que vê nossa relação com Deus, com o mundo natural e uns com os outros, como todos intrinsecamente relacionados. Uma ideologia, por outro lado, é um esquema mental que tentamos impor à realidade, para nos dar segurança. Mas, em última análise, é uma fuga. A parte do livro em que ele trata da polarização, a grande pandemia de nossa era, é das mais profundas. Contém o insight de que não existem contradições, apenas coisas em tensão. Em Deus não há contradição.

O papa Francisco critica as teorias da conspiração sobre a pandemia e fala sobre o mau uso das redes sociais. Qual a importância dessas mensagens?

O livro está repleto de mensagens importantes sobre a pandemia, sobre as escolhas que ela força, escolhas que “revelam nossos corações”. Por exemplo, aqueles que negam ou minimizam a ameaça do coronavírus para proteger a economia estão fazendo uma escolha a partir de suas prioridades, assim como aqueles que se recusam a obedecer às medidas de saúde pública com base na liberdade individual.

O isolamento social provocado pela pandemia abalou o papa?

Não. Quando nos encontramos em setembro, ele me pareceu cheio de energia e alegria. Acho que a pandemia o energizou. Minha sensação é de que ele se sente como se tivesse recebido uma grande missão final: liderar a Igreja e o Povo de Deus na aurora do mundo pós-covid. Sua alegria vem de compartilhar essa grande e solene responsabilidade. Mas é claro que ele sente a dor dessa época e se refere a isso de maneira comovente no livro.

Alguns observadores afirmaram que o coronavírus foi um duro golpe no papado de Francisco.

Houve um momento neste ano, por volta da Páscoa, em que vários comentaristas falavam sobre o “fim” do pontificado e apontavam para as praças vazias no confinamento do Vaticano como o símbolo de um papa “sozinho”, separado de seu povo. É um absurdo. Francisco tem muitas maneiras diferentes de estar perto das pessoas. O bloqueio paralisou o turismo e afetou as receitas do Vaticano, mas o papel do papa foi realçado pela pandemia.

A pandemia mostrou que o papa estava certo ao defender uma igreja missionária e voltada aos mais pobres?

A Igreja mudou durante a crise, que acelerou o que já era claro: que a fé já não se transmite pela lei, pela cultura, pela instituição e pela família, mas pelo testemunho e pela experiência. Entender essa mudança é a chave do pontificado de Francisco. Neste contexto, a Igreja ou é “próxima e concreta” ou é abstrata, distante, gnóstica. A pandemia dramatiza esta escolha.

Como o papa aborda o tema dos direitos e do acolhimento católico aos homossexuais?


Como arcebispo de Buenos Aires, em 2010, ele se opôs a um projeto de lei de casamento entre pessoas do mesmo sexo, acreditando que a instituição é, por definição, heterossexual e procriativa. Mas foi a favor de proteções legais e privilégios para relacionamentos não conjugais de longo prazo, incluindo os do mesmo sexo. Ele não vê contradição em oferecer apoio, amor e boas-vindas aos gays, apoiando-os contra a discriminação, ao mesmo tempo em que defende o magistério católico tradicional sobre sexualidade e casamento.

O papa tem a consciência de que, além de líder político e espiritual, acabou se tornando, sob vários aspectos, a voz progressista do mundo contemporâneo?

Não é fácil mapear categorias políticas na Igreja e Francisco, em particular, tem uma visão que está em desacordo com o populismo nacionalista e também com a política liberal tecnocrática. Em Vamos Sonhar Juntos, ele deu o relato mais completo de sua visão sobre o que a política poderia e deveria ser. É uma política que vem do povo e visa a restaurar a dignidade e a fraternidade do povo. É uma forma nobre de serviço que serve ao bem comum e às necessidades concretas das pessoas, especialmente dos pobres. E visa a uma economia que regenera, inclui e cuida do planeta. É impossível ler o livro e não sair acreditando que outro tipo de política é possível.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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