Entre março de 2020, quando a pandemia foi decretada e tive de voltar as pressas do Pantanal até hoje passei 19 semanas no bioma. Trabalhei em campanhas de financiamento coletivo para criação de Brigadas comunitárias e centros veterinários; produzi um documentário que estreia mês que vem no Globoplay; fotografei para um projeto pessoal que venho desenvolvendo há anos e escrevi e fotografei para diversas matérias aqui na Istoé. Na última delas, “esperando ajuda dos céus”, em 21/9, eu expressei minha frustração com a ineficiência do combate aos incêndios apesar do aprendizado do ano passado e melhora, concluí que apenas ajuda “divina” em forma de chuvas torrenciais pode acabar com os incêndios no Pantanal.
Pois bem, de lá para cá passei mais 3 semanas no bioma, as chuvas chegaram aparentemente em níveis normais para os meses de setembro e outubro, as chamadas “chuvas de manga”, chuvas isoladas ainda fracas para reverter uma das maiores secas da história do bioma e insuficientes para apagar os incêndios que ainda assolam a região. Chuva e fogo lado a lado são mais um paradoxo desse bioma que é um paradoxo por definição.

Jacaré não resistiu à seca
Afirmo que o Pantanal é um paradoxo pois a maior planície alagável do planeta, um mundo de águas, sofre com seca e fogo todos os anos. De longe, na frieza dos mapas, é minúsculo, ocupando menos de 2% do território brasileiro, mas de dentro, navegando por seus rios e contemplando o horizonte, percebemos quão infinita é uma área selvagem maior que Suíça, Portugal e Holanda somados. Com 95% de sua área coberta por propriedades privadas (fazendas), 300 anos de pecuária como principal atividade econômica e incêndios recorde que destruíram 26% do Pantanal em 2020, ele ainda é considerado o bioma mais preservado do Brasil. É ou não é paradoxal?
Com tantas contradições fica difícil explicar para os leitores o que está acontecendo na região, sua importância ecológica e a “montanha russa” de emoções que estamos vivendo desde julho de 2020, quando foi constatado que os incêndios tinham uma proporção nunca antes vista. Falei de 2020 nas matérias “Anjos no inferno” e “E agora Pantanal?”, mas vamos falar do que está acontecendo nesse ano.
Antes de mais nada, é importante entender que o ciclo das águas, com estações de chuvas, cheia, vazante e seca, dita todo ritmo da vida no Pantanal. O bioma está encravado no centro da América do Sul, as águas que o irrigam vêm das nascentes subterrâneas do Cerrado, das chuvas nas cabeceiras do planalto que o cerca e da umidade que vem da Amazônia. Todos os anos de julho a outubro a estação seca desafia a sobrevivência dos animais, no final da seca é comum que raios das primeiras tempestades tragam um fogo renovador, logo apagado pelas chuvas. Em média 8% do bioma queima anualmente. De novembro a março as chuvas enchem a planície, moldando a paisagem e trazendo uma explosão de vida. De abril a junho a vazante vai drenando essas águas, até que a seca predomine novamente. Esse ciclo em equilíbrio ajuda a regular o clima do continente.

Ponte em fazenda em setembro de 2019

Mesma ponte em setembro de 2021
A localização geográfica do Pantanal o faz um paraíso ecológico, essencial para os animais, conectando biomas como Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado e Chaco (Paraguai e Bolívia). Com tantas influências a região tem uma das maiores biodiversidades do mundo e é considerado o melhor local da América do Sul para turismo de observação de animais. Por isso tantos fotógrafos, documentaristas, pesquisadores e amantes da natureza “migram” anualmente para a região em busca de encontros com a fauna em geral e as onças-pintadas em particular (o Pantanal tem a maior densidade do mundo desses carismáticos felinos). Porém com a seca e os incêndios, testemunhamos muitos animais em sofrimento ou feridos.
Os problemas que ameaçam o Pantanal começam fora dele. O desmatamento da Amazônia que diminui a umidade emanada pela floresta; as plantações nas cabeceiras e desmatamento de matas ciliares que assoreiam os rios mudando seus cursos e as mudanças climáticas causadas pela ação humana estão fazendo com que o Pantanal esteja cada vez mais seco. Estudos da organização Map Biomas, que une dezenas de ONGs, Institutos e Universidades do Brasil e do exterior, mostram que nos últimos 30 anos o bioma perdeu 29% de sua cobertura de água na estação cheia, e água é a base da vida.
A soma desses fatores fez com que o Pantanal viva em 2021 uma das maiores secas de sua história e onde tem seca, tem fogo. Ações de prevenção e combate a incêndios feitas por ONGs, governos estaduais e orgãos federais como Prevfogo IBAMA, ICMBio e Força Nacional mantiveram o problema do fogo – aumentado por incêndios criminosos – próximo da média histórica. Até hoje o Sistema Alarmes registra que 9,65% do bioma queimou nesse ano, mas o número irá aumentar pois ainda há muitos focos ativos.

Filhotes de onça em beira de rio
A seca e o fogo atingem de formas diferentes cada pedaço desse “mundão” chamado Pantanal. Ao contrário do ano passado, quando percorri quase todo Pantanal, nesse ano concentrei meu trabalho numa região particular: O Parque Estadual Encontro das Águas, no MT, próximo a divisa com o MS. Atualmente a 7a localidade mais afetada pelos incêndios em 2021, o PEEA teve 8,62% de sua área queimada, pouco se comparado aos 93% destruídos pelo fogo no ano passado.
Esse Parque representa apenas 0,7% de todo Pantanal, tem a maior concentração de onças-pintadas do mundo e é fundamental para a economia local por gerar milhões de dólares através do ecoturismo. O foco do meu trabalho foi documentar a recuperação da população de onças-pintadas, principal atrativo turístico da região.
Na maior parte das 7 semanas que passei na região o fogo parecia inexistente. Os rios permanentes, apesar de estarem no menor nível já registrado pelos moradores antigos, transformaram o PEEA numa espécie de oásis para os animais. Entretanto uma simples virada de vento, com predominância de sul, fazia com que o horizonte ficasse esfumaçado, os olhos ardessem e um cheiro de queimado tomasse o ar.

Quati sedento em poça de água
Assim, ao mesmo tempo em que vivia o êxtase de registrar cenas incríveis das onças, em especial mães com filhotes, o fantasma do fogo sempre estava rondando. A importância econômica da região a fez um dos focos de atenção principal de orgãos estaduais e federais; ONGs e operadores de turismo. Ao que tudo indica o PEEA não sofreu com incêndios criminosos e o fogo natural, causado por raios de tempestades, foi controlado, embora ainda ajam pequenos incêndios que resistem as chuvas.
Poucos animais feridos foram encontrados e o trabalho principal foi de ajudar animais levando água e comida as áreas mais secas do Parque e seu entorno; e até transferir jacarés de lagoas secando para áreas alagadas.
O cenário que vi com meus olhos traz um pouco de alívio, embora o fogo que atingiu o PEEA e fazendas vizinhas pudesse ter sido apagado com um pouco mais de verba. Apesar da seca extrema tudo indica que aprendemos com os erros de 2020 e podemos melhorar mais para 2022.
Eu estava quase terminando essa matéria com uma mensagem positiva, mas no momento em que estava fechando o texto, recebi um telefonema do meu amigo Leonardo Gomes, diretor de relações institucionais do SOS Pantanal, instituição responsável por criar 24 brigadas comunitárias e de fazendas. Léo esteve comigo no combate aos incêndios de setembro no PEEA e desde então percorre todas áreas mais afetadas do Pantanal, apoiando as Brigadas e combatendo incêndios.

Fogo em Mato Grosso do Sul
Leonardo me ligou da Fazenda Santa Sofia, em Aquidauana-MS, “virado” mais de 24hs combatendo o fogo, descreveu um cenário infernal que nos é familiar. O fogo está forte nos municípios de Miranda e Aquidauana, uma região pela qual tenho muito carinho. A Fazenda Sete onde filmei minha 1a onça em 1999 teve quase 100% de sua área queimada; o Refúgio Ecológico Caiman, outro dos melhores locais do mundo para se observar onças em seu habitat, teve quase 20% de sua área devastada e a Fazenda Santa Sofia já perdeu 14.500 dos seus 34 mil hectares. O fogo está tão forte que só pode ser extinto com a chegada das chuvas, previstas para essa semana.
Pelo que pesquisei não houveram tempestades com raios na região, indicando que os incêndios tenham origem em ações humanas. A Policia Militar Ambiental de Miranda-MS anunciou que multou um proprietário rural por iniciar uma queimada e perder o controle da mesma. O valor da multa? Míseros 9 mil reais.
Seria muito leviano de minha parte relacionar essa queimada com a origem dos incêndios que menciono, mas uma coisa é certa: esses e muitos outros incêndios são causados pelo homem. E para evitar que em 2022 o Pantanal viva novamente a tensão de uma “montanha russa” de emoções é preciso que implantemos leis mais severas e fiscalização rígida, com pena de prisão para quem inicie incêndios florestais.

Turistas observam capivaras em área seca