Referência nacional e internacional no estudo sobre doenças infectocontagiosas, a pneumologista Margareth Dalcolmo, 66 anos, está entre as personalidades da área da ciência que mais se destacaram na difusão de informações confiáveis sobre a Covid-19. Assim que a pandemia começou na China, e antes que chegasse aqui, a especialista ficou em contato com pesquisadores do mundo inteiro para entender melhor com que tipo de vírus o Brasil teria de lidar. Além de pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Margareth foi eleita presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, cargo que assume no fim do ano; e faz parte de um seleto grupo de peritos – são 18 de diversos países do mundo –, que fornecem recomendações à Organização Mundial de Saúde para a aprovação e fármacos na Lista de Medicamentos Essenciais, desde 2015. No início deste ano, ela foi reeleita e deve permanecer no time até 2026. Ultimamente Margareth também se dedica a divulgação do livro recém-lançado Um Tempo para não esquecer — a visão da ciência no enfrentamento da pandemia do coronavírus e o futuro da saúde.

Deixar de usar a máscara é seguro?
Ultimamente, eu repito isso toda hora. O Brasil está com outras prioridades. Suspender o uso em locais públicos é contribuir para o recrudescimento da doença. Ainda tem muito brasileiro que não recebeu a primeira dose e outros que não receberam a segunda. A cepa Ômicron vem causando infecções principalmente no grupo de não vacinados. Veja o que acontece na China. Hong Kong, por exemplo, tem 80% de não vacinados. A Ômicron pegou principalmente essa população. Por isso, os lockdowns em várias regiões. Há outras questões também. Estamos quase em abril, época as viroses respiratórias aumentam. O uso da máscara ajudou na proteção contra a Covid e de outros vírus como influenza e rinovirose.

Então as pessoas devem continuar a usar a máscara?
A máscara deveria ser mantida em todos os lugares fechados, como escolas, universidades, escritórios e transporte público.

Há suspeitas de que a Deltacron (nova cepa da Covid) já tenha chegado ao Brasil. É possível?
Sim. Mas ela não é mais transmissível que a Ômicron. Ao invés de tirar a máscara, o governo deveria fazer todo mundo sair correndo para se vacinar. Muitas pessoas me perguntam sobre a máscara. Outras dizem que estão seguindo minhas orientações de usá-la em locais fechados e de grandes aglomerações, mas que são encaradas como se fossem um ET.

O que a senhora achou da atitude de um professor da rede pública em São Paulo, que levou uma churrasqueira para o colégio para queimar as máscaras?
Achei lamentável, deseducador, um gesto contrário da libertação. Pense que um espirro joga no ar milhões de partículas infectadas. É uma perda de energia discutir se temos uma endemia ou uma pandemia. Eu garanto que epidemia não acaba por decreto, mas pela diminuição de casos. Estamos com a vacinação muito abaixo do seguro principalmente entre crianças e idosos. A China está reabrindo os hospitais de campanha. Não temos de usar máscara para o resto da vida. Isso vai mudar. Porém, é um hábito que deveríamos incorporar sempre que necessário, assim como fazem os orientais. Se você está gripado, o certo seria entrar em um transporte público ou em qualquer local fechado de máscara para não espalhar a doença.

Faltou comando do governo federal no sentido de haver uma campanha nacional para a vacinação em massa?
Precisamos analisar o status epidemiológico de cada região. O fato é que no Brasil ainda trabalhamos apenas com as informações de um consórcio de imprensa. Felizmente, instituições importantes, como a Arquidiocese e a USP mantiveram a recomendação de manter a máscara.

A senhora lançou um livro com um título impactante. O que mais guardou desse primeiro período de pandemia?
O início da pandemia, os primeiros casos graves, quando começamos a observar as internações que pareciam ser apenas por pneumonia severa. No Brasil inteiro era um momento que muita gente viajava e voltava contaminado da Europa. A doença começou a circular antes da OMS inclusive declarar pandemia e batizar a doença de Covid-19. Todo mundo passou por isso. Eu fiz parte do grupo que assessorou o ministro (Luiz Henrique) Mandetta. No início de março de 2020, nós ficamos alguns dias em Brasília em contato online permanente com colegas de outros países, como Espanha, Itália, Equador e Estados Unidos. Conversávamos com eles para saber o que estavam passando, porque sabíamos já naquele momento que a situação no Brasil mudaria para o panorama dos países que nos antecederam. Era óbvio que a doença chegaria aqui. Naquele momento, revimos as normas brasileiras para síndrome respiratória aguda grave e para casos de gripe.

Como foi fazer parte de um grupo científico provedor de informações, que o governo desmentia sempre que podia?
O Brasil passou por situações desnecessárias. Por exemplo, o primeiro pico epidêmico aqui foi em Manaus. Era final de abril, quando houve uma explosão da mortandade no local. Sete meses depois veio outra onda, dessa vez de infecção pela Gama, e como ninguém mais tinha imunidade, sucederam-se mais casos graves e mortes. Aí ficou provado que não existia imunidade adquirida com a doença. O discurso oficial era para todo mundo ficar doente e ganhar imunidade. A gente sabia que isso não valia, mas foi de uma maneira quase macabra que as autoridades entenderam. Não precisava tanta morte. Naquele momento já desenvolvíamos estudos. Houve o que eu chamo de tensão desnecessária entre a comunidade acadêmica e a retórica oficial. Nunca tivemos uma coordenação harmônica.

Mesmo assim, o País acabou sendo um importante campo de testes de vacinas.
Se você observar, o Brasil foi cenário de grandes estudos de fase 3 de vacinas. O País foi o maior fornecedor de voluntários. No desenvolvimento da vacina da AstraZeneca, por exemplo, 52% eram brasileiros. E em todos esses estudos havia participação de pesquisadores locais. Com isso, quero dizer que tivemos uma participação muito consistente, firme e pujante nas pesquisas. O Brasil é hoje o 11º país em publicações científicas sobre a Covid-19, o que não é pouca coisa, considerando que competimos com países que apóiam a ciência. Aqui, a gente convive com essa tensão, que foi maior no período pandêmico. Recentemente tivemos muitos cortes de verbas para estudos de qualidade, que foram publicados em revistas científicas importantes. É o caso dos medicamentos imunomoduladores, feitos no Brasil, e que hoje estão aprovados pela ANVISA, enfim pela CONITEC para serem utilizados.

A senhora participa de alguma pesquisa no momento?
Eu estou conduzindo dois estudos com novos antivirais, que podem tratar 80% de casos leves e moderados, que vão receber remédio oral durante cinco dias. É um espetáculo. Será uma mudança de paradigma no tratamento. Mas isso não dispensa as vacinas, que sabíamos que eram importantes desde o início. Tratamento com medicamento é para virose crônica, como AIDS e hepatite C. Isso você resolve com remédio. Mas para virose aguda de transmissão respiratória tem que vacinar. Fazemos o mesmo para sarampo e febre amarela, por exemplo.

Os casos de hospitalização e síndromes respiratórias graves da Covid-19 devem tê-la remetido aos primeiros casos de AIDS. A senhora já era pneumologista?
Sim, eu comecei a trabalhar com pacientes com AIDS, quando ela surgiu no Brasil. No início dos anos 1980, todo mundo morria de doença respiratória, no início, a doença era diagnosticada basicamente como pneumonia. Pacientes ricos e pobres. Não importava. Todos morriam da mesma coisa.

Houve impactos secundários da pandemia na saúde?
Em 2019, antes da Covid, tivemos um significativo aumento da tuberculose no Brasil. Foi uma catástrofe. Não esperávamos. Por causa da pandemia, realizamos 40% menos diagnósticos porque os serviços não funcionavam. Nem todos os serviços de saúde funcionaram como a Fiocruz, que não parou. Até porque nós desenvolvemos estudos de pesquisa clínica, então não tinha como parar. Atendíamos a população em locais propícios, abertos. Fizemos de tudo para não perder os pacientes voluntários, que são arrolados nos protocolos de pesquisa. Mesmo assim caíram os diagnósticos de doenças graves como as cardíacas e o câncer. O número de pessoas que perderam o timing para tratar e operar foi alto. Alguma hora isso aparecerá nas estatísticas de mortalidade. As pessoas não saíram de casa, não foram fazer exames de rotina. Tanto o câncer de mama como o de próstata aumentaram consideravelmente. E não só no Brasil.

O que a pandemia vai deixar de bom?
Acho que a Covid-19 trouxe para o Brasil três coisas boas. Primeiro, nós, pesquisadores tivemos de sair dos nossos casulos — laboratórios e consultórios — para informar as pessoas. Isso era importantíssimo, porque a população foi tomada pelo terror, pelo medo. As pessoas precisavam confiar em alguém. E nós tínhamos de lutar não apenas para informar como a gente faz até hoje mas também para desconstruir informações falaciosas, mentirosas e sem suporte científico. Isso continua até hoje. Digo que a gente descobriu um talento novo, o de comunicar de uma maneira que as pessoas entendessem. O segundo ponto é ver, depois de muita discussão sobre compra privada de vacina, brasileiros poderosos economicamente se vacinando no SUS e postando com orgulho a foto nas redes sociais. Foi um ganho enorme em um País com tantas diferenças. Por último, foi o surgimento de um voluntariado de qualidade, com apoio da iniciativa privada. Não perco a esperança no ser humano, apesar de tudo que a gente vê Brasil afora. O médico lida com a vida e com a morte o tempo inteiro.

Os médicos relatam vários casos de doentes que depois do vírus debelado ficaram com sequelas. Todas tem cura?
Sem dúvida a Covid tem sequelas a médio e longo prazo e não necessariamente ligadas à gravidade do quadro original. É a chamada Covid longa, que exige reabilitação em equipes multidisciplinares de largo prazo. Considero hoje esse um dos grandes desafios da medicina. As sequelas podem ser respiratórias, vasculares, cardíacas e psiquiátricas exigindo tratamento. Mas no curto recuo histórico de dois anos, não é possível dizer que todas as sequelas têm cura ou afirmar quais são indeléveis. Mais de 50% das pessoas saem com alguma sequela neurológica, como neuropatias periféricas, lapso de memória e mudança de humor.