21/08/2020 - 8:13
Quase seis meses após desembarcar na América Latina, o coronavírus causou mais de 250.000 mortes e aprofunda a pobreza e a desigualdade, ameaçando apagar uma década de lentos avanços sociais.
Em seus bairros marginais, com saneamento precário e onde a população mora aglomerada, o vírus e o desespero pela falta de dinheiro se espalham, em meio à redução brutal da atividade econômica devido às medidas contra a pandemia.
Milhares de famílias enfrentam o dilema de encher o estômago ou evitar o contágio e, no pior dos casos, não conseguem evitar a fome nem a doença.
“Por causa dessa pandemia, fiquei desempregada. Tem dia que até pulamos uma refeição porque a situação é difícil”, contou Milena Maia em sua modesta casa na favela Heliópolis, uma das maiores de São Paulo, com 200 mil habitantes.
Mãe solteira de 36 anos, ela limpava casas, mas agora depende de doações de uma ONG para alimentar seus três filhos. Alguns de seus conhecidos morreram de COVID-19 e “muitos estão infectados”.
Outros, como Priscila Tomas da Silva, seu marido e seis filhos, tiveram que sair da casa alugada e improvisar um teto com pedaços de madeira e plástico em um estacionamento de caminhões em Julieta Jardim, na periferia de São Paulo. Em poucas semanas, cerca de 700 barracos semelhantes foram construídos ali.
A situação se repete no resto da América Latina.
– Estado insuficiente –
Esta região representa 9% da população mundial e, no entanto, concentrou quase 40% das mortes pela pandemia nos últimos dois meses.
Este dado “nos dá uma ideia do grande impacto que tem tido”, disse à AFP Luis Felipe López-Calva, diretor para a América Latina do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
“Na ausência de uma reação política efetiva, em nível regional podemos falar de um retrocesso de até 10 anos nos níveis de pobreza multidimensional”, acrescentou, observando que, embora os países tenham dado respostas muito heterogêneas, como um todo “aprenderam” no processo.
Dada a persistência das infecções, alguns governos reverteram a flexibilização dos confinamentos, como aconteceu nas últimas semanas no Peru, Argentina e Venezuela.
Ao mesmo tempo, implementaram ajudas aos setores com menos recursos.
Chile e Peru, por exemplo, aprovaram leis para sacar um adiantamento da aposentadoria, o que proporcionou alívio imediato, embora, segundo especialistas, vá prejudicar os já frágeis sistemas previdenciários no futuro.
“A quarentena e a pandemia revelam realidades cada vez mais profundas. A injustiça estrutural se torna visível”, comentou à AFP Lorenzo de Vedia, padre Toto, na Villa 21, uma favela no sul de Buenos Aires.
“A presença do Estado é insuficiente e desordenada”, acrescentou. Seu trabalho, que vai desde distribuir doações até confortar famílias em luto pelo vírus, tornou-se crucial.
O padre Guillermo Torres, com função semelhante na Villa 31, disse que a solidariedade comunitária tem sido fundamental para que nada “explodisse”, aludindo a possíveis distúrbios pela crise sufocante.
De fato, as ondas solidárias, organizadas por toda a parte, têm sido uma válvula de escape à crescente pressão social.
Não impediram, porém, na capital chilena violentas barricadas e saques há semanas, nem que na Bolívia várias grandes marchas exigissem que o governo fornecesse mais soluções.
– Novos pobres –
Em uma economia que vai contrair mais de 9%, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) estima que o desemprego pode chegar a 13,5% este ano.
Cifra que representa 44 milhões de pessoas sem trabalho, 18 milhões a mais que em janeiro.
Quase dois terços dos trabalhadores estão expostos a ficar desempregados, perder horas de trabalho ou renda, alertou a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Assim, a epidemia expulsará 45 milhões de pessoas da classe média, para acrescentar 231 milhões de pobres (37% da população), segundo a CEPAL.
O Peru, que cresceu acima da média regional nos últimos anos, viu seu PIB cair 17%, e as famílias de renda média, cujo número vinha crescendo continuamente por 15 anos, está cambaleando.
Foi o que aconteceu com Sara Paredes e Raúl Cisneros, casal que de um dia para o outro ficou sem rendimentos.
“Faz cinco meses que ninguém me dá trabalho de tradução ou interpretação”, conta ele, tradutor e professor de quíchua de 46 anos.
Ela, de 45 anos, ficou sem poder dar aulas na Escola de Belas Artes e sem apresentações teatrais. Agora, mal conseguem alimentar os dois filhos.
– Condições pré-existentes –
Registros piores de mortes por doenças tratáveis, como dengue, violência doméstica e evasão escolar, podem ser adicionados à insegurança no trabalho ou à falta de assistência médica.
E a insegurança ameaça disparar. Em países como Guatemala e El Salvador, altamente dependentes de remessas estrangeiras – em mínimos históricos – a violência de gangues aumentou após um declínio no início da pandemia.
“Assim como os indivíduos mais vulneráveis à pandemia são aqueles com as chamadas condições médicas pré-existentes, as economias e sociedades mais vulneráveis à pandemia também são aquelas com condições pré-existentes, ou seja, com alta desigualdade, com políticas e instituições públicas ineficientes”, resumiu López-Calva.
Reconhecendo que nenhum país estava preparado para enfrentar uma crise “de governança, sistêmica” de tal magnitude, advertiu que “o impacto social começa a afetar a capacidade de resistência das pessoas”.
A CEPAL insiste na relevância de proporcionar uma Renda Básica de Emergência por seis meses para toda a população vulnerável, bem como um Bônus mensal Contra a Fome.
Também propôs prazos de carência para empréstimos a pequenas e médias empresas, políticas fiscais e monetárias que sustentem um período mais longo de gastos e acesso a financiamento em condições favoráveis para os países de renda média, em particular para o Caribe, duramente atingido pelos efeitos das mudanças climáticas.
Após seis meses de pandemia, as infecções superam 6,4 milhões de 620 milhões de latino-americanos.
Em muitos hospitais urbanos e rurais, a infraestrutura para o tratamento da COVID-19 entrou em colapso, em parte como resultado de sistemas de saúde subfinanciados. burs-ll/lda/gma/mr